Dar de beber ao molho

O que é um molho? É um adorno do palato, a alma de um prato ou a essência do sabor de uma criação culinária? As definições sucedem-se e raramente convergem para uma resposta única e consensual. E haverá sempre um vector não contemplado que podemos adicionar ao leque de respostas possíveis. Reformulei por duas vezes este artigo, o assunto merece e todo o espaço editorial é exíguo para um tema pouco frequente e tão estruturante. Não sou cozinheiro e nunca me substituirei aos muitos profissionais de grande gabarito que povoam a cena restaurativa nacional, mas é inevitável uma breve incursão aos fundamentos e à história do molho culinário e seu papel na cozinha e na mesa. Escolho como luzeiro a definição do Larousse Gastronomique que diz que “de forma geral, chama-se molho a todo o acompanhamento líquido dos alimentos”. E assim liberto-me do preconceito clássico e demasiado redutor, para me juntar ao colégio dos “normais”, que tanto chama molho a um velouté como a um vinagrete.

Podemos fixar o início épico da aventura do molho em 1651, com a publicação do calhamaço intitulado “o cozinheiro francês” pelo gigante clássico François-Pierre de La Varenne. Muito do que se pratica em alta cozinha e conhece bebe ainda desse instante luminoso primordial. Devemos-lhe pelo menos a invenção dos “roux”, preparados culinários com farinha em vez de pão que depois vão estar na base de muitos fundos de cozinha e caldos, por sua vez integrados em declinações culinárias diversas. Mais tarde, já no séc. XIX, com Marie-Antoine Carême foram fixados quatro molhos fundamentais, que Auguste Escoffier já no séc. XX (1903) viria a categorizar em cinco grandes grupos: béchamel, velouté, espanhol, tomate e holandês, no totem em torno do qual o mundo continua a girar e que dá pelo nome de “Le Guide Culinaire”. O enorme salto técnico deu-se quando por efeito directo da Revolução Francesa a cozinha de palácio deixou de existir porque os seus obreiros foram dispensados. Ainda bem, dizemos nós porque foi isso que fundou a venerável actividade da restauração. A nobreza e a alta burguesia passaram a frequentá-la, em vez de ter cozinhas nas suas casas. O conhecimento democratizou-se e os códices foram trazidos para a luz do dia. Felizmente a arte culinária não se perdeu, antes permitiu que se desenvolvesse e ramificasse.

A estrutura de um molho tem basicamente três componentes e determina entre outras a vocação vínica de que vamos munir determinado prato. São elas a líquida, a aromática, e a espessante. A base é sempre líquida; um molho é essencialmente líquido, todos concordamos. Chamamos-lhes caldos ou fundos quando há cozedura conjunta de proteína, pedaços de carne ou peixe e verduras classificamos como claro quando a extracção – leia-se cozedura – é curta e escuro quando é prolongada. Os veloutés e os molhos de tomate enquadram-se nos fundos claros, enquanto o espanhol parte de um fundo escuro. O leite é muitas vezes a base líquida de molhos diversos, especialmente o bechamel, pela riqueza de sabor e pela reacção positiva ao calor. Também fundamental como componente líquida é a manteiga clarificada, que resulta da separação pelo calor da água e do soro do leite, concentrando a densidade e sabor. É ingrediente fundamental do molho holandês e a base culinária por exemplo dos ovos Bénedict.

Os aromáticos dividem-se em mirepoix – tipicamente cenouras, cebolas e salsa – e o chamado bouquet garni, pequenos aglomerados de talos de salsa, tomilho, louro e alho francês. Finalmente, os espessantes são instrumentais na afinação da textura de um molho. O principal ingrediente é, neste aspecto, o que conhecemos como roux – lê-se “ru” – e consiste de mistura em partes iguais de farinha e uma gordura, tipicamente manteiga. No tacho damos-lhe a cozedura de 2-3 minutos para ter roux branco, que utilizamos para chegar ao molho branco e ao bechamel. Qualquer deles nasceu para gratinar ou emulsionar e prefere vinho branco sem madeira a todos os outros. Muito bom com filetes de linguado no forno. Mais dois minutos de calor e passa a roux dourado, o segredo de um bom velouté e de tantos molhos básicos. Com 15 minutos chegamos ao roux castanho e acima disso entramos no roux exótico. Qualquer um pode ser feito com antecedência e guardado em quantidade no frio. Sangue, gema de ovo e amido de milho – Maizena – são espessantes eficazes. Descritos os fundamentos, avançamos para os cinco molhos mais importantes, agora descritos segundo o binómio ingredientes e harmonizações felizes.

 

O que fazer com este molho?

Molho Béchamel: Composto por leite, roux branco, ervas aromáticas e especiarias. Liga bem com ovos, legumes, peixe, frango, carnes vermelhas e massas. Gosta de Arinto sem madeira. de acidez pronunciada e de Fernão Pires com mais de três anos.
São diversos os pratos felizes com a assessoria deste molho, com a blanquete de vitela no topo da lista, seguida de muito perto por filetes de pescada, peixinhos da horta e bacalhau no forno. A pimenta rosa é um bom intensificador de sabor e consegue explorar com eficácia a maioria dos pormenores sem interferir demasiado no prato.
Molho de tomate: Composto por tomate, banha de porco, ervas aromáticas, roux branco, especiarias e mirepoix. Utiliza-se em diversas situações e é talvez o mais flexível de todos e geralmente pede mais vinho tinto que branco mas há que atentar à proteína dominante e ao “peso” tânico do vinho. A intuição e o processamento culinário contudo ditam o caminho a seguir. Entre as utilizações mais frequentes estão massas, pizas, todos os tipos de carne, pratos de tacho de peixe e cozinhas vegetarianas.

Molho holandês: Composto por gema de ovo, especiarias, manteiga clarificada e sumo de limão. Aproxima-se pacificamente de carnes vermelhas, ovos, peixe, frango e vegetais. Está no coração de clássicos como os ovos Bénedict e presta-se a muitas declinações. É, por exemplo o dip perfeito com peixinhos da horta, o mesmo é dizer tempuras na cozinha japonesa. Rega bem a parafernália marisqueira e é brilhante com leguminosas. Aceita vinhos encorpados brancos e tintos.
Molho velouté (aveludado): Composto por caldo de frango, roux dourado, ervas aromáticas e especiarias. Está na base de dezenas de molhos e é particularmente feliz em sopas. A tonalidade amarelada coloca-o na charneira entre carne e peixe e leva ao extremo os acompanhamentos com picles e picantes. Em matéria vínica, trabalha na perfeição com rosés com alguma idade e brancos fermentados em madeira. Presta-se além disso a montagens eficazes de cocktails e buffets. Pela acidez e mineralidade os brancos do Pico funcionarão bem.

Molho espanhol (espagnole): A cor retinta e carregada inspira desde logo a vocação para démi-glace. Composto por caldo de vitela, roux castanho, puré de tomate, mirepoix, ervas aromáticas e especiarias. Encontra parceiros fortes em carnes vermelhas, porco e borrego. Um carré assado fica automaticamente completa no palato em termos de nutrição. O rosbife à inglesa é outra vocação forte, assim como o bife grelhado ou o tornedó. Na cozinha de sala vinga bem todos os apetites carnívoros. Pede tintos vigorosos com acidez moderada.

Molho de tomate

E há mais, muito mais

Pegamos em óleo de sésamo ou azeite, juntamos vinagre ou limão, temperamos a gosto e temos o tempero de salada a que damos o nome de… molho vinagrete! Estamos fora do registo formal anteriormente descrito e ainda bem, que há vida para além da cozinha francesa! O molho de manteiga simples acrescentado ou não de mostarda está na base do molho cervejeiro mais frequente, que aceitamos como molho. Depois há todo um desfile de molhos que hotéis, cafés e tascas servem com orgulho e garbo a passantes e clientes habituais e com esses infelizmente bebe-se quase sempre cerveja. O tinto mais cervejeiro que conheço e por isso aconselho é o da casta Rufete produzido na Beira Interior.

Contribuem para essa extrema aptidão a pouca extracção na vinificação e a elevada acidez que a região prefigura. Certa vez em Londres provei um prato num restaurante de duas estrelas Michelin que constava de lavagante servido com molho diable – diabo em português – quando, sendo um molho castanho e denso, é normalmente servido com pratos profundamente carnívoros. Foi-me explicado que a estratégia passava pela textura, não tanto pelo sabor. A partir do momento em que absorvemos a teoria, temos mais capacidade de abordar novas situações e desafios.

A abordagem à cozinha vegetariana, por exemplo, representa para o chef de formação clássica um desafio grande que é desenvolver pratos sem proteína animal. Com isso, é bastante mais difícil estabelecer estratégias para chegar ao molho ideal. Os clientes gostam de ter molho no prato, quando não o encontram sentem-se perdidos, aprende-se na escola na formação superior que vai formar os chefs de amanhã. As cozinhas de inspiração oriental vulgarizaram o molho de soja na mesa e hoje não há peça de sushi ou sashimi que não se passe pela tacinha, resultando numa ingestão exagerada de sal e na consequente deturpação do sabor. As cozinhas de vanguarda aplicam muitos extractos e legumes fermentados que impossibilitam a ornamentação clássica com um molho. Os fundos de cozinha utilizados nas cozinhas de produção são não raras vez de fabrico em série e isso está a normalizar os palatos e a interromper a cadeia do gosto, impondo mais uma standardização. As ameaças estão por toda a parte e somos chamados a resistir e a ensinar os nossos filhos a discernir e escolher o caminho da autonomia.

Que nunca nos falte o molho nem o critério!

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)

SIGA-NOS NO INSTAGRAM
SIGA-NOS NO FACEBOOK
SIGA-NOS NO LINKEDIN
APP GRANDES ESCOLHAS
SUBSCREVA A NOSSA NEWSLETTER
Fique a par de todas as novidades sobre vinhos, eventos, promoções e muito mais.