David Guimaraens é conhecido no Douro, em jeito de brincadeira, como o “Ayatollah do vinho do Porto”, mas também é o homem que se emocionou quando viu os trabalhadores da vindima entrar no lagar, pela primeira vez depois do início da pandemia. Nasceu no Porto, a 13 de Outubro de 1965, e representa a sexta geração de uma família inglesa dedicada exclusivamente a este negócio, sendo hoje director técnico, enólogo e master blender do grupo The Fladgate Partnership (Taylor’s, Croft, Fonseca Guimaraens, Krohn…). Uma conversa sobre o ano vitivinícola de 2022 acabou por desaguar em temas mais fracturantes e controversos, como a sustentabilidade social e económica da região, e David terminou a denunciar os calcanhares de Aquiles do Douro.
Texto: Mariana Lopes Fotos: The Fladgate Partnership
Numa visita por algumas das propriedades durienses do grupo The Fladgate Partnership — que resultou, em edição anterior, numa peça sobre as inovações tecnológicas da empresa — acabámos sentados com David Guimaraens, na Quinta da Roêda, a conversar sobre “o estado da nação”. Primeiro, o clima, as vinhas e a vindima de 2022, num ano que, para quem produz vinho no Douro, segundo o enólogo, não foi dos melhores. Estávamos em finais de Setembro.
“As vinhas estão acastanhadas, com ar cansado”, começou por dizer. “Normalmente, no fim da vindima estão mais verdes, mas este ano castigou-as e ficou marcado por falta de chuva, com um Inverno muito seco. Aqui, na Roêda, choveram 75 milímetros, o que é muito pouco face aos normais 300. Em Março, ainda vieram 70 milímetros que foram importantes, mas de modo geral, todo o ano foi muito seco. Paralelamente, tivemos várias vagas de calor. Usualmente, temos no Douro a ‘queima de São João’, no final de Junho, altura em que o tempo muda radicalmente. Este ano tivemos aquilo a que chamámos ‘queima de Santo António’, porque o calor forte veio no início de Junho. Daqui para a frente, houve muitos dias acima dos 40ºC, e Julho foi dos mais quentes que registámos. Por cima dos solos com pouquíssima água, estas vagas de calor só vieram agravar tudo”, explicou, com a calma e boa disposição que já lhe é característica.
Esta declaração levou à pergunta óbvia que, traduzida “para miúdos”, não é mais do que “isso significa que os vinhos vão ser maus?”, ao que David respondeu: “Não. O que foi extraordinário, foi que, quando eu vim de férias em meados de Agosto, esperava encontrar as uvas numa desgraça total. Mas, como elas nasceram já com sede, criaram uma resistência extraordinária. Bagos pequenos, como é característico, mas nenhuma uva passa, ao contrário de 2017. Tivemos sim, aquilo que acontece quando está muito calor, que é os ácidos muito, muito baixos. Mas isso não é tão dramático no vinho do Porto. Porque um dos segredos deste tipo de vinho é que a aguardente vem equilibrar tudo. Nos vinhos não fortificados, não há aguardente para equilibrar. Não fosse esta uma região de vinho do Porto…”, afirmou, cautelosamente, já a abrir caminho para um tema que lhe diz muito. Assim, nas propriedades da Fladgate iniciou-se a vindima de 2022, pelas vinhas que estavam, como diz David Guimaraens, pela “hora da morte”, em zonas mais quentes.
Mas como se lida com uma situação destas, quais os mecanismos? Para David, não há dúvidas: “Uma das riquezas do Douro é exactamente o que temos aqui, uma viticultura de montanha, com três grandes factores para trabalhar. As sub-regiões, desde o Baixo Corgo que é menos árido, ao Douro Superior, que é mais, sendo que nos anos secos a primeira aguenta melhor esta aridez; depois, a altitude, quanto maior é, menos temperatura e maior pluviosidade; e a orientação, ou exposição solar, porque dentro da mesma quinta, as vinhas têm exposições diferentes. Tudo isto, conjugado com as grandes castas que temos no Douro, é um puzzle que podemos fazer a nosso favor. Em anos extremos como este, para o lado da aridez, haverá bastantes variações de quinta para quinta, e de produtor para produtor, no resultado dos vinhos”, desenvolveu o director técnico. Portanto, antes da vindima, o ano estava desanimador, assumimos. Ao que David replicou, seguro de si: “Os vinhos do início da vindima eram pouco entusiasmantes. Se não se deve dizer isto, e dizer que é tudo mágico? Alguns preferem, mas eu não”.
Mais tarde, houve dois episódios de chuva no Douro. “Aqui na Roêda, tivemos 5 milímetros no dia 6 de Setembro — um primeiro borrifo bom para aliviar — e depois, a 13 e 14 de Setembro, vieram 30 milímetros. Num ano ‘normal’, isto seria muito, mas os solos estavam tão sequiosos que absorveram tudo, e funcionou como uma rega. Eu sou a favor de rega, mas somente de rega pluvial, que é a da chuva. Esta água veio ajudar as uvas a refinar, e incentivar as vinhas a terminar a sua maturação”, adiantou David Guimaraens, que acabou por tornar o cenário mais animador: “O ano de 2022 é o ano do rio Pinhão. Nós temos muita área de vinha no vale do Pinhão, que sofreu no início da vindima pelo que já falámos, mas acabou por haver uvas fabulosas. Fizemos, nesta zona, muitos investimentos nos últimos tempos, com compra de propriedades, por exemplo. Este é, na verdade, o centro do Douro, e tem muitas quintas, também de outros produtores, que sempre foram extraordinárias”, admitiu.
Quanto ao comportamento das castas, o enólogo desvendou que as que melhor se aguentaram no início conturbado da vindima foram a Tinta Roriz e a Touriga Nacional. A Touriga Francesa também mereceu destaque pela positiva, mas demorou mais tempo a amadurecer e a libertar a cor. Uma das que mais sofreram este ano foi, a título de exemplo, a Tinta Amarela. “Mas no vinho do Porto esta é outra vantagem, dá-se menos ênfase à casta e mais ao local, porque, e é aquilo que já se faz no Douro desde sempre, usam-se várias castas, que se complementam”, sublinhou David. “Os viticultores que têm andado a investir menos na vinha, e que as têm com menos vigor, são os mais afectados, porque estas vinhas se ressentem muito mais, e também por isto há tanta variação por local. Naturalmente que, quanto mais velha a vinha, mais resiste. Eu costumo comparar uma videira velha a um homem velho: já não produz tanto, mas o que produz é com mais sabedoria…”.
Um problema de estrutura
Perante a exposição de David Guimaraens sobre o ano vitivinícola de 2022, e os pontos mais gerais em que tocou sobre o clima, impôs-se a questão das alterações climáticas. O enólogo retorquiu com veemência: “As alterações climáticas são desculpa para muita incompetência. Neste momento, está-se a pôr debaixo das alterações climáticas muitas asneiras que têm sido feitas. Não digo, com isto, que elas não existam, pelo contrário, são muito reais. Mas por exemplo, a região do Douro tinha, antigamente, uma viticultura assente no field blend (mistura das castas) e em densidade de plantação, onde cada unidade produzia pouco, mas a soma das unidades produzia quantidade satisfatória. Além disso, o porta enxerto utilizado era o Rupestris, que é menos produtivo mas muito resistente à secura. O lote de castas que utilizávamos era também muito maior do que o que ficou depois do ‘afunilamento’ das décadas de 70/80. E quando veio a obsessão, que ainda temos hoje, a obsessão triste da mecanização, alterou-se o equilíbrio. A mecanização é uma necessidade, mas se a estamos a utilizar para baixar os custos, não estamos a ir pelo caminho certo. A nossa obsessão deve ser criar valor. A mecanização é uma evolução natural para se ir fazendo. A região está há 50 anos obcecada pela mecanização, e andamos aqui todos a chorar porque vendemos o vinho do Porto e os vinhos DOC Douro baratos, e vendemos mais barato do que regiões planas com 3 vezes mais produção. E isto leva-nos, naturalmente, ao problema da mão-de-obra”. Por esta altura da conversa, David Guimaraens, embora sempre sorridente, começava a agravar a voz, e sabíamos que o desabafo não tardava. “Nós só temos problema de mão-de-obra porque não temos dinheiro para a pagar. Os portugueses não emigram para França por gostarem de foie gras. Vão embora porque ganham mais dinheiro fora. No sector, temos visões muito deturpadas das coisas. E depois vem-se com chavões, a falar das alterações climáticas, para justificar tudo e permitir tudo. Elas são problemáticas, sobretudo ao nível dos acontecimentos extremos. Podemos dizer que o ano vitícola de 2022 foi efeito das alterações climáticas, mas se é para assumir, então, que vai ser sempre assim daqui para a frente, mais vale fechar as portas e ir embora. Temos de aprender a viver com elas. É uma chatice, há-que sermos criativos, mas já o fomos noutros momentos. Aliás, num determinado ano menos bom, em vez de ser a Quinta da Roêda a fazer um grande Vintage, será a quinta de outro produtor. Acredito vivamente que o Douro pode ser um exemplo, a nível mundial, na reacção às alterações climáticas, pela experiência que temos aqui. Podemos reconsiderar as nossas vinhas de preferência, consoante as condições. Não estou de acordo, por exemplo, que a forma de reagir seja regar a vinha”, referiu David. Mas este tema da rega daria outro almoço…
A controvérsia
No seguimento das dicas que David nos foi dando sobre as vantagens da produção de vinho do Porto, tendo em conta as adversidades climáticas, tivemos de perguntar… “é contra a existência da DOC Douro?”. O enólogo respondeu com murros na mesa: “Não, não e não. Não tem nada que ver com ser contra ou a favor. A minha visão é simples, um Vintage é engarrafado quando temos um conjunto perfeito de vinhos que reflectem um ano e um lugar, mas quando os vinhos não são perfeitos, lidamos com isso através do envelhecimento em cascos de carvalho. Estes estilos de vinho do Porto são ambos fabulosos, e são uma grande forma de nos adaptarmos às condições do nosso clima, porque somos uma região de clima mais extremado por natureza, que amadurece as uvas para álcool mais elevado. No vinho do Porto, isso não é um problema, porque adicionamos aguardente no processo. Para os produtores de DOC Douro, só não é um problema porque fazem ‘vinho do Porto para diabéticos’, que é o que eu costumo chamar, em tom de brincadeira, aos vinhos ‘de mesa’ [não-fortificados] com muito álcool e sem açúcar”, riu-se.
E foi aqui que, no semblante de David Guimaraens, o vento mudou de direcção. “O vinho do Porto é um grande exemplo de sustentabilidade, e alguns vinhos do Douro também. Mas o grande tema que eu quero trazer para a mesa vai colocar-me em apuros, e quando falo nele todos se zangam: desafio os portugueses com sentido de moralidade a denunciar que esta região é uma vergonha. Estamos numa região extraordinária, e nunca se vendeu tanto vinho do Porto de qualidade como se vende hoje. Basta olhar para o número de projectos novos de famílias ligadas ao Douro, que hoje produzem vinhos do Porto de qualidade. Falo de Vieira de Sousa, Domingos Alves de Sousa, Wine&Soul, e muitos outros. Se não estamos a vender tanto volume, é porque o consumidor bebe menos mas bebe melhor. Não vamos confundir o vinho do Porto com um estilo de vinho que está condenado à morte, mas sim que se tem de adaptar ao mercado. O vinho DOC Douro é um grande vinho, que está a ganhar cada vez mais nome pelo Mundo fora, e é muito importante para a região a longo prazo. Está a dar muito dinheiro. O turismo, por sua vez, tem trazido muita riqueza, com os centros de visita, alojamentos, programas de enoturismo… mas quem sustenta isto tudo, e toda esta paisagem, está nas ruas da amargura: é o viticultor”, confessou, finalmente. “É muito triste, porque a razão é sermos todos uma cambada de incompetentes. Empresas de vinho do Porto, empresas de DOC Douro, Estado e viticultores. O viticultor do Douro, que produz e vende ao quilo, está a falir, porque o sector é imoral. Estou farto de assistir a isto. Este ano, mais um viticultor “meu” vendeu as vinhas por não ter viabilidade económica. Uma das razões pelas quais não temos pessoas, é ser difícil o trabalho da vinha e não dar dinheiro. Esta vergonha está por denunciar: nós temos vinhas, e estas vinhas e o Douro têm um conjunto de regras que foram desenhadas quando a região só tinha uma Denominação de Origem (D.O.), que era Porto. Há 20 e poucos anos atrás, nasceu uma segunda D.O., Douro. Eu falo mal dos vinhos DOC Douro não pela qualidade — até porque quem os faz são meus amigos, de quem gosto muito — mas não tivemos a competência, ou interesse, em alterar as regras. Cerca de três quartos das videiras da região, hoje (as que têm licença para produzir Porto) podem originar duas D.O., Porto e Douro, independentemente se têm ‘benefício’ ou não. Numa videira com 4 cachos, dois podem originar vinho do Douro, e os outros dois, Porto. O vinho do Porto paga €1,50 por quilo, e o do Douro paga €0,60”, disse, visivelmente zangado, enquanto batia com os punhos na mesa. E continuou. “Esta é a realidade. Duas D.O., dois preços diferentes. E a maior mentira, que ninguém reconhece, é esta: nunca uma vinha é vindimada primeiro para vinho do Porto e depois, uma segunda vez, para DOC Douro. Nós alimentamos uma mentira no Douro, porque não temos capacidade colectiva de actualizar as regras para reflectir a nova realidade. É imoral e, acima de tudo, uma mentira. É imoral porque eu vou a uma vinha, e pelas uvas até à cota de produção pago €1,50 por quilo, e a DOC Douro compra as outras, já a pagar bem, a €0,60 ou €0,70, abaixo do custo de produção. Isto só existe porque, para o vinho do Porto, há uma cota de produção, que é o chamado ‘benefício’, que limita a oferta e a procura, tudo o resto, e como a região é excedentária em produção, é mercado livre”, esmiuçou David. “Temos duas regras, para duas D.O., na mesma videira. Mas que grande mentira! E a incompetência de todos está no seguinte: nós, empresas de vinho do Porto, ou não nos entendemos para mudar as regras, ou juntamo-nos aos outros e passamos a fazer DOC Douro e tiramos partido dela. Os viticultores não se conseguem organizar para exigir alteração. O Estado, também não muda nada, não está ‘nem aí’. E às empresas de DOC Douro não lhes interessa, porque estão a comprar matéria-prima barata. Isto é uma tragédia, é muito errado”. Ao proferir estas palavras, estava à vista de todos que David se preocupa realmente com o problema, e os seus olhos pediam por alguém se se juntasse à causa. “Sozinho, não consigo mudar nada…”.
A possível solução
“Como se pode solucionar o problema?”, questionámos. David tinha a resposta na ponta da língua: “Eu só peço uma simples alteração: todos terem de optar, parcela a parcela, se fazem vinho do Porto ou Douro. Se fizerem Porto, têm o ‘benefício’, e só as uvas que sobram é que vão para não-fortificado. Se fizerem Douro, não podem receber ‘benefício’. Assim, obrigamos a região a ser honesta, porque quando vindimamos, sabemos bem que uvas vão para uma D.O. ou para outra. Agora, esta incompetência colectiva está a levar à destruição da actividade de viticultor, que é o que eu digo há vários anos. Por tudo isto, eu apelo ao boicote do vinho DOC Douro, até a região mudar as regras!” lança, revoltado. “Vamos ser honestos, decentes… Está na hora de reconhecer que as regras estão desactualizadas e que estamos a fazer o viticultor, que vive de vender uva ao quilo, definhar. Não culpo nem aponto o dedo a um ou outro, porque não é assim que se resolvem as coisas. Eu afirmo que o sistema está mal, e que todos nós sabemos que está mal, um sistema em que uns enriquecem erradamente e outros empobrecem cada vez mais”, atirou David Guimaraens. “Esta é a razão principal pela qual o David não faz vinhos DOC Douro?”. “É”. “E se as regras mudassem e ficassem mais justas, ponderaria fazer?”. “Sim”.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2023)