A Bairrada é uma região com grandes tradições vinícolas. A partir dos anos 20, surgiram muitas das mais conhecidas Caves, concebidas, sobretudo, para a produção de espumantes. Algumas alargaram os seus horizontes e vingaram até hoje; outras ficaram pelo caminho. António Dias Cardoso, enólogo e profundo conhecedor da Bairrada, acaba de publicar um livro sobre a história e o dinamismo empresarial da região.
TEXTO Mariana Lopes FOTOS Anabela Trindade e Ricardo Palma Veiga
A história das empresas de vinho bairradinas começou em 1893, com a Associação Vinícola da Bairrada a encetar a produção de espumantes na região. O pontapé de saída tinha sido já dado, três anos antes, pela Escola Prática de Viticultura e Pomologia da Bairrada, sob a direcção de José Tavares da Silva, engenheiro agrónomo. Tendo a AVB laborado até 1905 com este nome, sucederam-lhe outros, culminando em Caves Monte Crasto, as quais, nos anos 90, caíram por insolvência. Apesar do nascimento “prematuro” desta Vinícola, foi depois de 1920 que se deu o “boom” das empresas mais emblemáticas: S. João (1920), Barrocão (1924), Aliança (1926), Messias (1926), Valdarcos (1926), Borlido (1930), Neto Costa (1931), Vice-Rei (1941), Império (1942), Montanha (1943), S. Domingos (1944), Caves Primavera (1947), Pontão (1949), Altoviso (1952), Fundação (1970) e outras mais.
António Dias Cardoso acaba de lançar um livro sobre o tema, “Caves da Bairrada, Elementos da Sua História”. Agora aposentado, é engenheiro agrónomo, foi director da Estação Vitivinícola da Bairrada, director de Serviços de Vitivinicultura na Direcção Regional (Bairrada, Dão e áreas limítrofes) e enólogo das Caves São João e Messias, tendo escrito vários livros técnicos, de enologia. Com modéstia na voz, revela: “Conheci muitas empresas e tive acesso a informação que nem toda a gente teve, então senti-me na obrigação de escrever este livro.” Foram dois anos de estudo, investigação e entrevistas a gente ligada às empresas e membros das suas famílias.
O “Champagne Português”
“A maior parte destes agentes económicos começaram a sua actividade sob o nome ‘Vinícola de qualquer coisa’ e não ‘Caves’”, conta Dias Cardoso. Aqueles adoptaram esta última designação porque eram, efectivamente, estruturas subterrâneas de engarrafamento e armazenamento. Mas Caves há em todo o lado. O que torna a Bairrada sui generis no panorama vitivinícola é o aglomerado deste tipo de adegas subterrâneas, construídas numa mesma época, numa mesma região.
E porquê só de engarrafamento e armazenamento? Na verdade, estas empresas não vinificavam, numa fase inicial. Era prática comum a compra de vinho a pequenos produtores e agricultores (mais tarde, nos anos 60, a adegas cooperativas), para engarrafamento e comercialização de brancos e tintos com o selo da marca.
Só muitas décadas depois é que a maioria das Caves sobreviventes, as que se renovaram e adaptaram, começaram a vinificar o seu próprio vinho tranquilo e a fazer os vinhos bases para espumantizar.
O impulso para a criação das Caves bairradinas foi dado maioritariamente, ainda no início do século, por visionários portugueses regressados da sua emigração no Brasil, que, por terem alargado horizontes, se prestaram a gestos ousados para a época. Em muitos casos eram pessoas sem qualquer formação académica, mas com sede de modernização e desenvolvimento.
Na verdade, o que motivou a produção de espumante na Bairrada foi a vontade de fazer o “champagne português”. Inicialmente, os produtores introduziram castas de Champagne na região, nomeadamente Pinot Noir e Chardonnay, mas tal revelou-se infrutífero a médio prazo. Assim, variedades regionais como Maria Gomes e Bical começaram a ser as mais utilizadas para o espumante da Bairrada.
É de notar, como absolutamente surpreendente, o volume de negócios e de emprego que estas Caves criaram nos seus tempos áureos, os anos 60. Mesmo numa fase de “vacas magras” (década de 90) já sem o contributo dos mercados das ex-colónias, as Caves Aliança empregavam 291 pessoas e geravam vendas de 26 milhões de euros anuais. Já na Messias laboravam 133 pessoas e vendiam-se cerca de 12 milhões de euros, por ano. As Caves Barrocão, com 52 trabalhadores, atingiam os 5 milhões anuais. No conjunto, só as empresas que nasceram na primeira metade do século XX vendiam no final dos anos 90 algo como 73 milhões de euros por ano e detinham um valor menor, mas muito parecido, de activos fixos.
Além de um mercado nacional sólido, com picos sazonais muito interessantes, a mina de ouro destas empresas era África, com destaque para os mercados de Angola e Moçambique. António Dias Cardoso lembra: “As Caves Primavera, a Imperial Vinícola [Caves Império] e as Caves S. João eram casos típicos de dependência do mercado africano.” De 1963 a 1967, este trio vendeu quase 69 milhões de litros para aqueles dois países, já para não falar das demais empresas. “Quase 50% do mercado de Angola era abastecido pelas empresas da Bairrada!”, lembra o agrónomo. No entanto, e invertendo o conhecido provérbio português, depois da bonança veio a tempestade. Mas isso já é outra história…
Mais de três dezenas de estrangeiros passaram pelo concurso, entre wine critics e/ou wine educators e sommeliers. Os presidentes do júri eram constituídos por enólogos portugueses com comprovada experiência e histórico. Todas as provas eram cegas e nos jurados estava presente uma boa parte dos técnicos de vinhos de qualidade deste país. Para eles, esta é também uma excelente oportunidade de entrarem em contacto com outros aromas e sabores e sempre uma oportunidade para acumular experiências e conhecimentos. Paulo Nunes dizia-nos exactamente isso: “acho que o grande salto de qualidade em Portugal aconteceu depois da crise (2008 e anos seguintes), quando os produtores portugueses tiveram de ir lá para fora, absorvendo conhecimentos e enfrentando a concorrência de todo o mundo. Tivemos de abrir os olhos…” Curiosamente, dois dias depois destas declarações em Santarém, Paulo subia ao palco em Arraiolos para receber o maior galardão do concurso. É ele o enólogo do Villa Oliveira Touriga Nacional de 2011 (da Casa da Passarella), um vinho nascido e criado no sopé da Serra da Estrela e que venceu dois dos sete maiores prémios: o Melhor Vinho do Ano e o Melhor Varietal tinto.
As Caves perdidas
Muitas das caves nascidas nos anos 20 mantiveram um crescente desenvolvimento ao longo dos tempos, mas outras acabaram por se afundar. Dias Cardoso apresenta três razões fundamentais para esse desfecho. Primeiramente, a forte dependência do mercado africano. Quando este se perdeu (depois da revolução de 1974), trazendo enormes dificuldades às transacções financeiras entre as ex-colónias e Portugal, algumas das Caves entraram em colapso por não conseguirem redireccionar o negócio para outros mercados. Outro motivo prendeu-se com dificuldades financeiras, devido ao crédito bancário praticado de forma excessiva e aos elevados juros. Como os administradores destas empresas eram, em geral, pessoas bastante conhecidas, os bancos conferiam-lhes crédito mesmo que não o pudessem suportar.
Em terceiro lugar, nas últimas duas décadas do século XX, o mercado nacional e internacional transformou-se e tornou-se muito mais exigente. A qualidade e perfil dos vinhos não se adequava aos requisitos dos novos tempos e as empresas que apenas engarrafavam (sem vinificar) não conseguiam controlar o produto dos fornecedores. Algumas Caves adaptaram-se e começaram a investir em adegas (e até vinhas); outras não o souberam ou puderam fazer e, inevitavelmente, definharam…
A renovação e o legado
Gradualmente, com o avançar das décadas, os produtores bairradinos foram alargando a gama de produtos (inicialmente centrada nos espumantes e aguardentes) e investindo no engarrafamento de vinhos tranquilos de denominações de origem, sobretudo Dão (logo nos anos 60), mas também Vinho Verde e, mais recentemente, Douro e Alentejo. Este conceito manteve-se até aos dias de hoje, sendo prática de empresas como Messias, S. João, Aliança, São Domingos, Primavera ou Montanha.
No entanto, a partir dos anos 90, os pequenos produtores bairradinos “de quinta”, como Luís Pato, Casa de Saima, Quinta da Dona ou Quinta das Bágeiras, começaram a ganhar clara vantagem perante o consumidor mais exigente, pois a qualidade dos seus vinhos era superior e tinham uma imagem mais forte e personalizada. Assim, estávamos perante uma clara mudança estratégica que, como Dias Cardoso conclui no seu livro, “implicou uma ligação à viticultura, assegurando uma produção própria controlada pelos seus técnicos e contribuindo decisivamente para a personalização dos seus vinhos”.
Apesar do peso que os vinhos tranquilos tiveram (e ainda têm) no negócio das Caves, a sua imagem, com algumas excepções, continuou a ser construída em torno dos espumantes. Estas singularidades das Caves bairradinas, e todo este dinamismo pioneiro em torno da produção de espumante, deixaram um legado impagável para a região: o desenvolvimento desta indústria como bandeira da Bairrada. Hoje, sabemos que cerca de 65% do espumante português é da Bairrada e 20% é certificado com a sua denominação de origem ou indicação geográfica.