Leonor Freitas é uma empresária que sonha com os olhos bem abertos. Nada lhe escapa, e parece que nada é capaz de a fazer estremecer ou desistir dos seus sonhos. É o rosto da Casa Ermelinda Freitas e uma figura emblemática no panorama vínico em Portugal, uma mulher de ferro com um coração mole, grande empatia e um apurado sentido de responsabilidade social e empresarial. A lealdade às raízes não impede o seu pensamento global.
Jaime Quendera é um enólogo extremamente competente, prático e perspicaz, um grande parceiro e amigo de Leonor, que a acompanhou na empresa desde o início. Juntos formam uma dupla de sucesso, que alia a formação e competência de Jaime à mente aberta e à intuição para o negócio de Leonor.
Península de Setúbal, o berço
Em 1920, era ainda uma casa agrícola tradicional. A partir dos anos 50, já sob a orientação do pai de Leonor, a vinha passou a ser o centro de produção. A primeira adega, construída nessa época, foi transformada num Espaço de Memórias e Afetos – um tributo à história e aos laços da família.
Em 1998, quando Leonor Freitas, a quarta geração da família, assumiu a liderança do negócio, iniciou-se a parceria de sucesso com o enólogo Jaime Quendera. Conheceram-se no ano anterior, na Vinexpo, em Bordéus. Leonor, ainda com pouca experiência no mundo do vinho, visitou a feira movida pela curiosidade. Isso abriu-lhe os horizontes e revelou-lhe que o vinho podia ser um “produto de dignificação”. “Percebi que tinha de começar a engarrafar”, recorda.
Por feliz coincidência encontrou, na Vinexpo, o seu primo, também produtor de vinhos, acompanhado por Jaime Quendera. Durante as visitas aos châteaux, conversou com Jaime, viu o seu entusiasmo e percebeu que tinha encontrado o parceiro certo para o projeto que estava a idealizar: “Acreditei no Jaime desde o primeiro momento. Não tive dúvidas.”
A motivação era grande, mas também o desafio. Leonor teve que se encher de coragem para encaminhar o adegueiro do tempo do seu pai para a reforma – a renovação era inevitável. Naquela altura, tinha encomendado algumas cubas e equipamentos para a adega. Jaime alterou tudo, explicando que em vez de depósitos altos e estreitos, habituais na altura, as cubas largas e baixas eram mais eficazes para maximizar a extração. Leonor seguiu à risca as suas recomendações. “Podia não ter conhecimento, mas sempre tive intuição”.
No ano seguinte engarrafou uma pequena quantidade de vinho (apenas sete mil garrafas) com a marca Terras do Pó. Mas o grosso do negócio continuava assente na venda a granel. Sentia até uma certa responsabilidade em manter a entrega do vinho à empresa parceira. Mas em 2002, com a crise a apertar, recebeu uma notícia inesperada: a empresa já não precisava do vinho. De um momento para o outro ficou com um milhão de litros sem destino. Leonor, no entanto, não é de baixar os braços. Arranja sempre uma solução, e melhor do que a anterior. Assim nasceu o bag-in-box MJFreitas, que não foi apenas uma salvação, mas um verdadeiro sucesso.
“Sempre crescemos em tempos de crise, a reinventar-nos, a fazer investimentos, porque quando a crise passa, temos de estar preparados.”
Crise e oportunidade
“Sempre crescemos em tempos de crise, a reinventar-nos, a fazer investimentos. Porque sabemos – e o Jaime tem aqui um papel muito importante – que, quando a crise passar, temos de estar preparados.” – resume a empresária.
Leonor nunca teve medo de duas coisas: trabalhar e pedir ajuda. Foi assim que aprendeu a operar a linha de enchimento, a manobrar o empilhador e a fazer tudo o que fosse preciso para a empresa. Durante as vindimas ficava na adega até às tantas, a analisar os mostos com Jaime e, às seis da manhã, já ia buscar os trabalhadores para a vindima.
O caminho não foi fácil, mas Leonor nunca parou. Arriscou, inovou, enfrentou as críticas, plantou vinha, comprou vinha, sempre com o apoio de Jaime, e em 25 anos, transformou a Casa Ermelinda Freitas na empresa nº 1 da Península de Setúbal em faturação (42 milhões de euros) e na segunda maior produtora de vinho certificado da região.
Começou com apenas 60 hectares e duas castas – Castelão e Fernão Pires – e hoje conta com 550 hectares e mais de 30 castas. Só no último ano, a produção total (entre vinho certificado e vinho de mesa) atingiu os 25 milhões de litros.
Actualmente planeia replantar 40 hectares de vinha e arrendar mais 60 hectares por 35 anos, o que equivale, na prática, a ter vinha própria. Além disso, compra uvas e vinho feito. Em setembro passado, comprou todas as uvas dos viticultores que não tinham comprador. Apoiar a região é uma verdadeira responsabilidade social para Leonor.
A Casa Ermelinda Freitas emprega 108 pessoas, mais 20 trabalham permanentemente na vinha. Onde é possível, investe em equipamentos de ponta e já têm poda automática e vindima à máquina em cerca de 150 hectares. Mas como nem todas as vinhas estão adaptadas à mecanização, nas alturas específicas chegam a contratar mais 100 trabalhadores temporários.
A estratégia sempre foi clara: produzir o melhor produto e colocá-lo no mercado pelo melhor preço. “Ao longo dos anos, fiz marketing natural, dando a cara. O meu vinho sempre teve um rosto, boa qualidade e história” – afirma Leonor e tem toda a razão.
“Sabíamos da compra da Quinta de Canivães, no Douro, era difícil rentabilizar. Mas achei que tinha direito à realização de um sonho”
“Só temos dinheiro do vinho, não temos outros negócios. Por isto, os nossos sonhos têm que se tornar rentáveis”
Expansão para Minho e Douro
Até 2017, a Casa Ermelinda Freitas cresceu dentro da região. Mas perseguindo o sonho antigo de ter “uma quintinha no Douro”, Leonor acabou por expandir o seu negócio para duas importantes e conhecidas regiões do Norte de Portugal: o Minho e o Douro.
Encontrar uma quinta no Douro que fosse tradicional e tivesse potencial revelou-se uma tarefa difícil. As opções eram poucas e, na maioria dos casos, não eram economicamente viáveis. Estava quase a abandonar a ideia do Douro, quando recebeu uma chamada inesperada com uma proposta de uma propriedade no Minho, perto de Braga. Pensou: “já que não consigo comprar nada no Douro, tenho de ponderar. Não gosto de fechar as portas.” Foram ver a quinta e perceberam que era uma oportunidade – tinha vinha e uma adega funcional. Leonor anda muito pelos mercados externos e sentiu que ter um Vinho Verde no portefólio seria uma mais-valia.
Mas Deus escreve direito por linhas tortas, e no intervalo entre o acordo e a concretização do negócio no Minho, surgiu uma quinta perto de Foz Côa, com os socalcos tradicionais, “um verdadeiro Douro”, exatamente como Leonor tinha sonhado. Com o parecer favorável de Jaime, avançou. “Sabíamos que era difícil rentabilizar. Mas achei que tinha direito à realização de um sonho e pensei para mim: se tiver que vender alguma coisa em Palmela, vendo”, confessa Leonor.
Investiu dois milhões de euros na Quinta do Minho na região dos Vinhos Verdes e 2,5 milhões na Quinta de Canivães no Douro, pois “o rio paga-se”. O sonho no Douro saiu mais caro e ainda precisa de muito investimento, mas valeu a pena.
“Tenho energia e projetos novos, como se fosse eterna”
Quinta com nome de região
A Quinta do Minho fica em Póvoa de Lanhoso, na sub-região de Ave. Embora não esteja muito longe do litoral (cerca de 40–50 km em linha reta do Oceano Atlântico), não é uma zona diretamente costeira e apresenta algumas influências do relevo interior. Está parcialmente protegida pela Serra do Gerês, que fica a nordeste, criando alguma barreira orográfica à precipitação e à temperatura.
A propriedade foi formada em 1990, a partir da fusão de duas quintas antigas: a Quinta do Bárrio e a Quinta da Pedreira. A casa principal brasonada remonta ao século XVIII. A quinta conta com 50 hectares, dos quais 10 são de vinha. A grande vantagem e a principal razão que levou Leonor Freitas a aceitar a proposta, foi a existência de uma adega bem equipada e funcional, com linha de engarrafamento. Isto permitiu uma rentabilização mais rápida do investimento. Ainda assim, o potencial da propriedade está longe de estar totalmente explorado, sobretudo na componente não industrial. A quinta inclui ainda dois palacetes antigos por recuperar, com grande potencial para projetos de enoturismo, mas este passo ainda não foi possível. “Só temos dinheiro do vinho, não temos outros negócios. Por isto, os nossos sonhos têm de se tornar rentáveis”, explica Leonor Freitas a sua grande máxima.
A adaptação à região correu bem, e Leonor partilha a sua experiência e visão desta aventura. “Pretendemos ir crescendo naturalmente. Estamos numa lógica de parceria, a contribuir para o prestígio da região e a ir ao encontro dos mercados. Ao mesmo tempo, percebemos que a antiguidade é um posto na região. Por exemplo, os vinhos com a nossa marca Campos do Minho não podem ser certificados como DO Vinho Verde, simplesmente porque o nome contém palavra “Minho”. Já um vinho de outra casa, chamado Terras do Minho, pode, porque a marca já existia antes de a regulamentação entrar em vigor. Vemos nisto alguma desigualdade de oportunidades, mas cada região tem as suas leis, e temos que aprender a lidar com elas.”
A primeira colheita foi lançada em 2020 e a produção já atinge os dois milhões de garrafas. O portefólio do Minho não concorre com o da Península de Setúbal — antes pelo contrário, criam-se sinergias: o Vinho Verde ajuda a vender os vinhos de Setúbal, e vice-versa.
A estratégia para os Vinhos Verdes mantém-se fiel à da casa-mãe: produzir bom vinho a bom preço. “O vinho tem de ter qualidade e agradar ao consumidor, que, na realidade, é quem paga as contas” – defende Leonor e acrescenta: “fazemos sempre algumas especialidades.” Neste caso, são os monovarietais de Loureiro, e certamente virá também um Alvarinho, casta com a qual já trabalha em Palmela.
Dispõem de várias marcas registadas, herdadas do proprietário anterior. Umas são mais vocacionadas para a exportação, outras para o retalho, como Fugaz e Gábia, e há marcas reservadas à restauração, como Campo da Vinha e Quinta do Minho.
A gama de estilos é abrangente e praticamente transversal às marcas, variando de um vinho ligeiro, um Vinho Verde clássico a monovarietais de Loureiro. O conceito do vinho ligeiro “importaram” da casa-mãe. É um vinho muito leve de corpo, com apenas 8,5% de álcool, ideal para o consumidor que procura vinhos menos alcoólicos. Considerado semi-doce, e os 20 g/l de açúcar estão perfeitamente equilibrados pela acidez, quando servido bem fresco, o seu perfil aromático e descomplicado funciona lindamente. Tem sido um sucesso de vendas. Outro ponto importante, na opinião de Jaime, é que “uma casa grande trabalha com casas grandes e, neste caso, os vinhos com menos álcool significam menos impostos para os importadores, o que, em escala, é muito notável.”
O estilo “clássico” do Vinho Verde corresponde ao imaginário coletivo do consumidor, com uma doçura residual (neste caso, 10 g/l de açúcar por 6 g/l de ácido tartárico) e a sensação de “agulha”, é proveniente da presença de gás carbónico (cerca de dois bar). O monovarietal de Loureiro, seco e sério, está disponível em duas versões: uma feita exclusivamente em inox e outra com uma breve passagem de dois meses pela madeira.
Quinta de Canivães – “um verdadeiro Douro”
O grande valor da Quinta de Canivães está na sua localização privilegiada, na sub-região do Douro Superior, perto de Vila Nova de Foz Côa, na margem esquerda do Douro. A propriedade tem quase um quilómetro de frente de rio, e das vinhas avista-se a confluência do rio Côa com o rio Douro.
Normalmente, quem tem propriedades e vinhas em zonas tão boas, não as vende. No entanto, a empresa que detinha a quinta entrou em insolvência. A propriedade, dada como garantia à Caixa Agrícola de Pinhel, foi colocada à venda. O proprietário anterior, contrariado, arrancou 15 hectares de vinha e retirou todo o equipamento da adega, deixando apenas os lagares de pedra, que não conseguiu levar. Restaram 20 hectares de vinha, dos quais cinco correspondem a vinhas mais velhas, com cerca de 30 anos. Atualmente, existe apenas encepamento tinto, com as três castas principais do Douro: as duas Tourigas e a Tinta Roriz. No futuro, está previsto o plantio de mais vinha, incluindo castas brancas típicas da região.
Os socalcos tradicionais, com 2,60 m de largura e de 2,5 a 3 m de altura são lindos, mas difíceis de trabalhar e não mecanizáveis. Se em Setúbal a apanha e entrega de uvas custa 4-5 cêntimos por kg, no Douro este valor sobe para 16 cêntimos.
Há já dois anos que está a converter a vinha para o modo de viticultura biológica. Falta um ano para obter a certificação, que considera uma mais-valia importante para o futuro. Esta transição “dói” principalmente ao Sr. Carlos, o colaborador que trata da vinha e da propriedade. À pergunta de Jaime se estava tudo bem na sua ausência, Sr. Carlos responde, com um sorrizo triste: “Sim, está tudo bem, o único problema é a relva… tanta relva na vinha…”
Há ainda 4,5 hectares de olival, do qual produzem, já há quatro anos, um azeite de alta qualidade com a marca Quinta de Canivães. As quatro mil garrafas de 500 ml são vendidas em lojas especializadas.
Como ainda não têm adega, Jaime e Leonor produzem o vinho nas instalações de outra empresa duriense (Saven). Neste momento têm duas referências no mercado: Quinta de Canivães 2020 (com estágio em carvalho americano e francês durante 8 meses) e Quinta de Canivães Reserva 2019 (com estágio de 12 meses), lançadas em Setembro do ano passado. Os vinhos são vendidos nas garrafeiras e na restauração. O lançamento de Grande Reserva está previsto no final deste ano. Existe uma segunda marca – Vinha de Canivães – destinada à exportação.
Compraram alguns equipamentos, como o trator, por exemplo, mas a adega ainda precisa de muito investimento. “O mundo não é só de rosas, e mesmo as rosas têm espinhos. Nós tentamos sempre a arredondá-los. Agora temos dois diamantes para lapidar”, resume Leonor Freitas.
“Ao longo dos anos, fiz marketing natural, dando a cara. O meu vinho sempre teve um rosto, boa qualidade e história”
Divulgar os vinhos de Portugal
Os novos projectos no Norte enquadram-se perfeitamente na estratégia da empresa de produzir vinhos de boa relação qualidade/preço, para todas as gamas e mercados, juntando agora uma vertente importante – divulgar os vinhos de Portugal de forma mais abrangente, sobretudo nos mercados externos.
Tendo em conta que a Casa Ermelinda Freitas está intrinsecamente ligada à Península de Setúbal, criaram uma empresa “irmã” – a Ermelinda Vinhos de Portugal – para não confundir o consumidor nacional. Nos mercados externos, como o Brasil, por exemplo, basta-lhes saber que é “o vinho da Ermelinda”. A faturação da Ermelinda Vinhos de Portugal é, por agora, de cerca de três milhões de euros, somando os dois projetos nortenhos.
A filha de Leonor, Joana, que representa a 5ª geração da família, já está na empresa há 20 anos. Ficou também entusiasmada com exploração de novos territórios e reconhece o seu papel em promover a Casa Ermelinda Freitas, a região onde estão e Portugal no seu todo. “Eu dou-lhe espaço, a casa tem que ter continuidade” – diz a empresária.
Embora Leonor tenha orgulho no percurso feito ao longo de mais de 25 anos no sector vitivinícola, considera que a Casa Ermelinda Freitas está ainda a meio do caminho, e tem um enorme potencial por explorar.
“Não quero bloquear a nova geração, mas vão ter que me aturar enquanto eu tiver saúde e cabeça. Tenho a mente rápida e não me sinto velha. Como vejo mal de perto, não vejo rugas – e tenho energia e projetos novos, como se fosse eterna” – confessa Leonor, entre sorrisos. E apetece-me acrescentar que Leonor vê muito bem ao longe, muito longe – no futuro.
Nota: A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico.
(Artigo publicado na edição de Maio de 2025)