Entrevista: Diogo Lopes, o enólogo de quem se fala

Aos 44 anos de idade, Diogo Lopes é hoje um dos nomes mais falados e unanimemente apreciados da “moderna” enologia portuguesa, emprestando o seu talento a sete distintos projectos vitivinícolas e com mais alguns em carteira. Para comemorar a sua 20ª vindima (na verdade, são 21, contando com a actual), encontrámo-nos à mesa para conversar e abrir algumas garrafas que espelham o seu trabalho e a sua visão do mundo do vinho.

Texto e Notas de Prova: Luís Lopes      Fotos: D.R.

Lisboeta de nascimento (1978), foi o entanto o campo e não a urbe que o motivou para escolher a profissão. Entre 1999 e 2004 estudou Engenharia Agronómica no Instituto Superior de Agronomia com especialização em Viticultura e Enologia. E foi enquanto estudante que visitou o primeiro Encontro com o Vinho, então ainda realizado em Santa Apolónia, com o fito de conhecer “as pessoas do vinho” e em particular os que mais admirava, João Portugal Ramos e Anselmo Mendes. Com este último, acabaria depois por estabelecer uma estreita relação pessoal e profissional que se estende intocada até aos dias de hoje. Quando Diogo Lopes menciona o “Mestre” (assim, com maiúsculas), já toda a gente sabe a quem se refere. A primeira vindima como estagiário ocorreu em 2001, da adega dos Vinhos Borges, na Lixa. Nunca mais falhou uma: 2002 com Anselmo Mendes, em Monção; 2003 em Napa Valley, na Califórnia; 2004 na Quinta de Lourosa (propriedade do seu orientador final de curso, professor Rogério de Castro). No âmbito, precisamente, desse trabalho final de curso, passou o ano de 2004 entre a Bairrada e os Vinhos Verdes integrado no projecto Lusocastas, que visava estudar os diferentes sistemas de condução para as principais castas portuguesas nessas regiões. Rogério de Castro e Amândio Cruz foram os seus coordenadores e cimentou-se aí uma paixão pela terra, pela videira, que se desenvolveu nos anos seguinte e que marca claramente o seu trabalho enquanto enólogo. Na vertente enológica, os conhecimentos foram aprofundados com uma pós-graduação em Enologia na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica no Porto.

O percurso enquanto profissional “à séria” (ou seja, enólogo residente) iniciou-se em 2005, em Cabeção, na Sociedade Agrícola do Vale de Joana, onde Anselmo Mendes era consultor. Ficou em Cabeção até 2010, começando aí um percurso de consultorias em parceria com “o Mestre” que o levaram ao Couteiro-Mor e, mais tarde, à Adega Mãe, ainda hoje, porventura, o projecto que mais visibilidade lhe trouxe e continua a trazer. Vieram outros, entretanto, alguns de onde já se desligou (Morais Rocha, na Vidigueira e Herdade de Vale D’Évora, em Mértola) e outros onde se mantém em plena actividade e com máximo empenho: Vinhos Magma (na Terceira, Açores, com Anselmo Mendes), Cazas Novas (em Baião, na maior vinha de Avesso – 36 ha – onde trabalha em parceria empresarial com a família proprietária, Cunha Coutinho, e dois outros sócios), Herdade Grande, na Vidigueira, Kranemann Wine Estates, no Vale do Távora, Douro e Herdade do Freixo, Redondo.

Já muito com que se entreter, mas Diogo Lopes não vai ficar por aqui. O enólogo admite ter “em construção” três novos projectos: um, em Melides, “8 ha de uma vinha de sequeiro muito especial”; outro em Alvito, “20 ha de vinha numa das mais históricas propriedades do Alentejo”; e um outro na Beira Interior, “com o meu primo, no projecto Vale do Griz, 6 ha apenas com castas regionais”.

Mas quem é, na verdade, Diogo Lopes? Quais as suas referências, o que o motiva, que vinhos ainda quer fazer? Foi o que fiquei a saber após algumas horas de conversa e mais de uma dúzia de vinhos provados (e, em boa parte, bebidos…). Segue a entrevista.

O que o fez encarar a vinha e vinho como carreira profissional? 

Nasci em Lisboa mas tive uma infância com uma base rural muito forte. Na verdade, férias para mim era ir ter com os meus avós à Beira e participar nas diversas actividades agrícolas. Eles eram agricultores, faziam um pouco de tudo, mas a vinha e o vinho eram o orgulho máximo do meu avô. Eu penso que a motivação deve ter vindo daí. Estudei no Colégio Militar, ainda fui para a Academia Naval para seguir o curso de oficial de Marinha, mas após um ano, a paixão pela Agronomia era muito maior. E então resolvi ingressar no ISA. Dentro do curso, foi só após ter travado conhecimento com o professor Rogério de Castro que a decisão de apontar baterias para a Viticultura e Enologia foi tomada. Foi ele quem me conduziu à conversa com o Anselmo Mendes para fazer o primeiro estágio de enologia em 2001. E a partir daí tudo se desencadeou.

Os primeiros anos na profissão, muitas vezes, definem o modo de estar de um profissional.  Onde mais aprendeu, o que o surpreendeu, que influências teve? 

O curso de Agronomia é fundamentalmente teórico. Os meus primeiros anos a “meter a mão na massa” serviram muito e foram fundamentais para ter contacto com os aspectos práticos do trabalho como enólogo. Na verdade, um enólogo faz muito mais coisas do que só a enologia pura… Há os aspectos burocráticos com as CVR, as encomendas de materiais para engarrafar, a própria manutenção dos equipamentos, gestão do pessoal. Nos primeiros anos creio que todas as semanas aconteciam coisas que eu nunca tinha feito. Desafios pequenos, mas onde é preciso encontrar soluções práticas e rápidas.

E agora entro na parte das influências. Tenho tido a sorte de me cruzar com muita gente e “beber” muitos ensinamentos, mas tenho de relevar um nome: Anselmo Mendes. O Anselmo Mendes sempre me ajudou a criar e a ter um método que seja desbloqueador e descomplicador de situações. Isso foi uma enorme ajuda. Mas o Mestre significou muito mais do que uma primeira oportunidade. Significou testemunhar os processos de experimentação que levava, em particular, em torno do Alvarinho. De um momento para o outro dei por mim a fazer estudos de fermentação em carvalho de diferentes florestas, com diferentes tostas, à procura das expressões mais genuínas das castas. E essa ideia da experimentação e da procura do que é mais genuíno ficou para sempre; acho que define muito do que continua a ser o meu trabalho. Agora dou por mim a fazer testes e mais testes e a descobrir o potencial do Avesso, ou do incrível Viosinho de Lisboa; o Vital em madeira e no ovo de cimento; os Pinot atlânticos; o Sousão e os Potes de Barro da Vidigueira, o carácter vulcânico dos Biscoitos.

Seja porque os anos e o clima mudam, seja porque a viticultura evoluiu, seja porque temos um património brutal de castas por potenciar em Portugal, a nossa atividade de enologia é dinâmica e uma descoberta permanente. E a minha descoberta começou com o Mestre! E depois achamos que fazemos um grande vinho, metemo-nos no avião, vamos à Borgonha e a Sancerre, ou vamos à Rioja, à África do Sul, ou mesmo ao novo mundo, Oregon, Napa, Mendoza… e somos surrados por novas influências, novas inspirações, que nos motivam sempre uma experiência… As viagens “vínicas” servem para apreender imenso.

 

Alentejo, Lisboa, Douro, Vinhos Verdes e Açores são as regiões onde Diogo Lopes espraia o seu talento.

 

Iniciou a carreira na vindima de 2001, um ano de boas memórias. O que mais o marcou nessa vindima? 

Foi uma experiência incrível na Borges. Até ali, as minhas vindimas eram as feitas na Beira, nos lagares do meu avô. Na Borges tudo era enorme. Tudo muito mais mecânico e muito mais prático. Lembro-me que logo no meu primeiro dia, trabalhámos mais de 12 horas e adorei. O cheiro da fermentação do Loureiro é algo que nunca mais irei esquecer…

Ao longo de quase 21 vindimas feitas (contando com esta que vai a meio) quais as que lembra pela positiva e pela negativa e porquê? 

2002 pela negativa. Aquilo foi chuva sem parar durante todo o setembro. 2014 também foi muito complicado, estava tudo no ponto mas depois começou a chover e estragou muita coisa. Pela positiva, 2012 e 2017. Anos perfeitos em equilíbrio. Nestes anos só é preciso não estragar, mesmo. Isso sim, é intervenção mínima!

Trabalha hoje em diversos produtores e distintas regiões (Alentejo, Lisboa, Douro, Vinhos Verdes e Açores) cada uma com suas características. Do ponto de vista de enólogo, o que destaca em cada região e quais os principais desafios/dificuldades? 

É super-desafiante trabalhar em regiões tão diferentes. Cada uma tem o seu lado especial e temos de nos adaptar para sabermos tirar o melhor. Na região de Lisboa, a influência do Atlântico é talvez a característica mais diferenciadora e temos de saber aproveitá-la de modo a ter vinhos carregados de autenticidade. O maior desafio é a mentalidade dos viticultores locais que, por vezes, ainda estão muito vocacionados para produzirem volume em detrimento da qualidade. Mas essa mentalidade vai mudando aos poucos. Lisboa é, quanto a mim, a região do continente mais genuinamente atlântica e isso espelha-se na originalidade e qualidade dos seus vinhos, em particular nos brancos. Acredito que a região tem tudo para vir a afirmar-se a nível nacional (na exportação já é um sucesso, mas sobretudo com vinhos de entrada de gama) e para contribuir de forma muito consistente para a afirmação dos vinhos brancos portugueses no mundo. Assim consigamos confirmar todo o potencial existente e alavancar essa grande marca que é o próprio nome Lisboa.

No Douro, destaco a magia das vinhas velhas. As vinhas velhas são um legado que nos foi deixado pelos nossos antepassados e temos de o saber interpretar. A maior dificuldade na região, é a escassez de mão de obra. Todos os anos vejo o rancho das pessoas que vindimam connosco e vejo-o a envelhecer, não há renovação e isso é muito, muito preocupante. Trabalhar num Douro de altitude e virado a Norte (como é o caso da Kranemann) também é desafiante, temos sempre de gastar mais tempo a explicar os vinhos. São, na verdade, vinhos de um outro Douro…

O que gosto mais no Alentejo? A resposta pode chocar alguns, mas aí vai: a maturação das uvas. Contrariamente ao que se podia pensar, considero que o Alentejo tem um clima perfeito para o amadurecimento das uvas. Ficamos com vinhos com uma belíssima estrutura tânica e muito fáceis de beber. Uma das grandes ameaças, no entanto, é o aquecimento global, os fenómenos extremos são cada vez mais constantes e impactam directamente na qualidade final das uvas. A falta de água é outro desafio constante.

Na ilha Terceira e na região de Biscoitos, temos a originalidade dos vinhos vulcânicos. São vinhos verdadeiramente diferentes, com notas únicas e que nos transportam para a ilha. São os Açores em estado puro e sem qualquer tipo de máscara. Ali, a maior dificuldade tem sido a luta contra a pressão imobiliária, que nos Biscoitos é constante e tem levado a um grande abandono da vinha.  A par de Carcavelos, os Biscoitos são, certamente, a DO mais ameaçada do país.

Finalmente, na região dos Vinho Verde, a revelação está no Avesso. Mais uma casta branca portuguesa de enorme potencial, que se tem mostrado sempre muito interessante nos diferentes processos de vinificação, com e sem madeira. E que expressa uma zona muito específica, Baião, que carece também de ser valorizada. A grande dificuldade está em explicar que este é um Vinho Verde diferente, longe do “gás e açúcar” com que muitos o identificam. Mudar essa percepção nem sempre é fácil.

Com tantos projectos, regiões, vinhos são muitas as variedades de uva que lhe passam pelas mãos. Quais as que mais gosta e porquê? 

Nas brancas, o Arinto e o Viosinho. Na verdade, quase que destacava todas as castas brancas, pois é a minha convicção que temos o maior património de castas brancas do mundo, todas carregadas de originalidade.  Mas adoro a versatilidade do Arinto, é uma casta que dá para fazer quase tudo e para melhorar quase tudo. Facilita imenso o meu trabalho.

O Viosinho é talvez a variedade branca com que mais trabalho e a uva que mais expressão tem ganho nos meus projectos. Quando vindimada no ponto óptimo, enriquece muito os vinhos, com estrutura e mineralidade.

Nas tintas, a Touriga Franca, do Douro ao Alentejo, entra sempre nos lotes dos melhores tintos que faço. É uma casta desafiante e que pode originar vinhos emblemáticos. Tenho de destacar também o Sousão, a casta que mais me surpreendeu nos últimos anos, com vinhos verdadeiramente originais.

Um enólogo consultor relaciona-se com vários produtores, com diferentes dimensões, objectivos, posicionamentos de mercado e, até, personalidades, pois as empresas são, sempre, as pessoas que as compõem. Como é lidar com tudo isto no dia a dia?  

Creio que se construiu uma certa imagem do enólogo enquanto estrela do sector, uma espécie de tipo que vive apenas a parte mais glamourosa do trabalho, que não dá cavaco a ninguém, mas a realidade é outra: a nossa responsabilidade tem de ser transversal. Temos de ter a humildade de nos saber integrar nos desafios da gestão, da viticultura, da produção e das vendas, porque sem sustentabilidade no negócio não existe futuro. A competência do enólogo também se manifesta na capacidade de entender os projectos que abraça e as pessoas com que se relaciona. Superamos desafios todos os dias, partilhamos opiniões diferentes muitas vezes, mas é possível alinharmos as ideias e concretizar objetivos que realizem todas as partes. Eu tenho um certo privilégio que é poder trabalhar em equipas que funcionam muito bem. E aqui tenho de ressalvar um ponto: equipas de dezenas de pessoas (desde os que andam de enxada nas vinhas, ou de mala de viagem cheia de vinhos, perdidos em aeroportos) que estão nos bastidores, mas que são cruciais. E nós, enólogos, somos apenas mais um elemento na máquina.

Enquanto enólogo tem um estilo, um perfil de vinho que é o “seu”? E procura que esse perfil seja evidente nos vinhos que trabalha ou tem em linha de conta o terroir, o objectivo comercial (e até o gosto pessoal) do seu cliente produtor? 

Eu tento sempre que os vinhos sejam uma expressão do local de onde vêm. Acho fundamental que o enólogo tente respeitar o terroir; quando trabalhamos com diversos produtores a última coisa que quero é que se diga que os vinhos são todos iguais. Mas também admito que possa haver pontos comuns, pois enquanto técnico privilégio sempre a acidez natural e o equilibro dos vinhos e tento tomar decisões que vão ao encontro disso mesmo. E naturalmente, as decisões são sempre coordenadas com os produtores com que trabalho, pois os vinhos têm de corresponder às expectativas que eles têm.

Que vinho (tipo/categoria/região) ainda não fez e gostaria de fazer? 

Gostava muito de fazer um vinho em Colares, em chão de areia. São vinhos sempre inebriantes, salgados, com máxima expressão Atlântica. Espero um dia conseguir fazer um.

Mais tarde ou mais cedo, boa parte dos consultores acabam por tornar-se também produtores, em maior ou menor escala. A produção faz parte do seu plano? 

Sempre tive o sonho de fazer um vinho na Beira Interior, na terra dos meus avós. Foi aí que tudo começou para mim e um dia destes haverei de lá chegar. A propriedade já existe e a realização desse sonho está para mais breve do que já esteve…

(Artigo publicado na edição de Outubro de 2022)

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