O percurso entre Alijó e a foz do Tua faz-se estrada abaixo, percorrendo a serpenteante EN 212. Deixando para trás São Mamede de Ribatua, olhamos sobre o ombro esquerdo e somos engolidos pela impressionante beleza dos socalcos do Douro, esculpido a golpes de picareta e teimosia dos homens que transformaram uma região inóspita numa paisagem única no Mundo. Há muitos anos, João Fernandes percorria quase todos os fins de semana estas mesmas estradas em busca de um segundo “Shangri-La”. O primeiro, havia-o descoberto José António Ramos Pinto Rosas, na sua Quinta da Ervamoira muitos anos antes.
A paixão de apreciador foi algo conquistada há cerca de uma vintena de anos, quando, finalmente, começou a ter tempo para dedicar aos seus.
CRESCIMENTO EMPRESARIAL
De origens humildes, João Fernandes nasce numa família onde à mesa não havia fartura. Eram onze os irmãos que partilhavam uma casa e a infância era fidalguia que não lhes estava destinada. Olhando para trás, João sabia que só com ligeireza e muito trabalho havia de singrar na vida. Na sua Barcelos natal terminavam-se os poucos anos de estudo e só havia duas alternativas, arranjava-se trabalho na indústria têxtil ou emigrava-se para França, como alguns dos seus irmãos fizeram. A escola da vida ensinou-o bem, moldando-lhe a têmpera para percorrer todos os setores da indústria de confeção, onde, quando chegou a cargos de chefia, já dominava todo o processo de fio a pavio. A emancipação chega há 40 anos, quando, à semelhança de outros, cria a sua primeira empresa de confeção numa pequena garagem. O resto é uma história de crescimento empresarial, com alguns dissabores pelo meio, fruto das cíclicas crises do setor. Já chegou a empregar quase 200 pessoas nas suas empresas, mas hoje centra-se somente no setor têxtil de luxo, criando peças de vestuário para algumas das mais renomadas marcas mundiais.
A chegada ao mundo da produção de vinhos vem por estrada. A paixão de apreciador foi conquistada há cerca de uma vintena de anos quando, finalmente, começou a ter tempo para se dedicar aos seus. Os fins de semana faziam-se pelas curvas do Douro, iniciando uma busca de algo que apenas o seu interior compreendia. Ao longo dos anos, percorreu todas as pequenas aldeias do Baixo Corgo ao Douro Superior. Ganhou a confiança dos locais, que lhe abriam as suas portas e, tantas vezes, lhe davam a provar verdadeiros tesouros guardados em cascos centenários no escuro de adegas sem história. Será este vivenciar de perto o Douro profundo que faz crescer em si uma indómita vontade de ali ter um pedacinho de terra a que pudesse chamar sua, cultivando vinha, plantando laranjeiras e oliveiras, mas, sobretudo, e ainda timidamente, fazendo nascer um grande vinho duriense.
O achamento dá-se em 2014, quando um telefonema o alerta para umas parcelas de vinha que estariam para venda na zona do Tua. A inquietude e uma certa aura mística levaram-no a pensar, ainda sem conhecer o local, que podia estar perante a oportunidade de uma vida. Foi o sexto sentido que tantas vezes o impulsionou nos negócios que o levou a não adiar a viagem de Barcelos ao Douro. A mesma EN 212 levou-o ao local onde era aguardado. Uma vista de sonho de vinhedos, plantados ainda durante os anos 80, que vão encontrar o Tua a abraçar o Douro. Pelo meio, ladeado por muros de xisto, um mar de laranjais e olival. Nesse dia descobriu que há beleza que vale todo o dinheiro do Mundo e, não olhando a tostões, apalavra o negócio concretizando-o rapidamente.
Com o encepamento distribuído pela trilogia mágica duriense – Touriga Nacional, Touriga Francesa e Tinta Roriz – a principal preocupação nestas parcelas é a concentração e a preservação do poderio da fruta.
A adega, edificada no século XIX, teve um passado ilustre. Nos primórdios, foi uma das muitas unidades de vinificação de vinho do Porto de D. Antónia Adelaide Ferreira.
A ADEGA DURIENSE
“E agora, o que fazemos com estas vinhas?”
A pergunta de reação ao impulso do industrial João Fernandes, surge do filho César, arquiteto de formação que, inicialmente, terá ficado com um ligeiro temor daquela compra. Nunca tinham feito um litro de vinho na vida e, agora, eram proprietários de mais de 3 hectares de vinhedos num local de exceção que, desde o século XVIII, produzia uvas para o vinho do Porto. A sorte e a fortuna bateram-lhes à porta quase de imediato. Se, no ano da aquisição, em 2014, a vinificação e estágio dos vinhos foram uma verdadeira aventura, com as uvas a serem transportadas para Valdigem (Baixo Corgo), sob coordenação da equipa de enologia de então, logo em 2015, é-lhes servida a possibilidade de adquirir à Sogrape uma adega a poucas centenas de metros das vinhas. Desativada desde os anos 90 e parcialmente em ruínas, a adega da Rua dos Ferroviários, paredes meias com a linha do Tua e vista sobre o Douro, parecia feita à medida das necessidades de vinificação da empresa Foz do Tua. Edificado no século XIX, o edifício teve um passado ilustre. Nos primórdios, foi uma das muitas unidades de vinificação de vinho do Porto de D. Antónia Adelaide Ferreira. De lá para cá, esteve nas mãos da Cockburn`s, Sandeman e terminou a sua vida ativa na posse da Sogrape, que a aliena à família Fernandes.
Com lagares de pedra no piso superior e grandes toneis no piso térreo, parcialmente em ruínas, a adega era agora uma tela em branco, ávida por ser delineada com arte e criatividade. Para César, ainda totalmente dedicado ao design e arquitetura de recuperação, o edifício era um daqueles desafios em que o ouro reluz sobre o azul.
Desenhar uma adega devidamente apetrechada e perfeitamente funcional foi conciliado com a preservação do edificado, ao qual se mantiveram todas as características da traça original, nomeadamente o travejamento das coberturas. O espaço foi maximizado com a demolição de cinco das sete cubas de cimento ali existentes, cada uma delas com capacidade de vinificação superior à produção atual do produtor. As cubas que se mantiveram foram transformadas em laboratório, cozinha e cafetaria. No piso superior permaneceram intactos os três lagares de pedra, um deles adaptado com aço inox e sistema de refrigeração das massas.
Por ora, a capacidade de vinificação não ultrapassa os 30 mil litros. Os tintos reinam, ou não fosse este o território por excelência para a produção de vinhos do Porto. Com o encepamento distribuído pela trilogia mágica duriense – Touriga Nacional, Touriga Francesa e Tinta Roriz – a principal preocupação nestas parcelas onde os verões fazem jus ao ditado “Nove meses de inverno, três de inferno”, é a concentração e a preservação do poderio da fruta. Convenhamos, criar vinhos de baixo teor alcoólico no Douro Superior é uma bizarria sem sentido!
DouTua, Foz Tua e o topo de gama Costureiro, são as marcas comercializadas pela empresa. O Costureiro tinto, cuja primeira edição nasce em 2016, surge de uma justa homenagem à tradição têxtil de Barcelos. É um vinho de memórias que apenas é lançado nos anos verdadeiramente excecionais, em que a conjugação dos elementos naturais e humanos (sim, aqui vive-se a escassez séria de mão de obra para trabalhar a vinha e a uva tem humores muito próprios, carecendo de ser vindimada no seu ponto perfeito, na hora ideal) proporcionam a criação de vinhos marcantes. Com a edição de 2018 a terminar o seu tempo de vida nos mercados, surge agora o 2019 que, como todos os vinhos respeitadores da sua origem, traduz todo o encanto do ano vitícola.
Não existindo castas brancas no encepamento da Foz do Tua, optou-se por trazê-las dos Altos. Ali, ao redor de Alijó, onde as vinhas se encontram nas cotas mais elevadas do Douro, entre os 600 e os 700 metros de atitude, celebraram-se acordos de cavalheiros com um número reduzido e muito confiável de viticultores, que fornecem Viosinho, Gouveio e também um pouco de Arinto, que compõem os lotes a partir dos quais se elaboram os DouTua e Foz Tua Reserva branco. Na forja, ou como quem diz, na barrica (carvalho francês com capacidade de 500 litros), encontra-se o futuro Costureiro branco, naquela que será a sua primeira edição, ainda sem data de comercialização.
FUTURO COM ENOTURISMO
A empatia de César Fernandes com a reabilitação e construção urbana fazem-no sonhar acordado com uma vertente mais ambiciosa de enoturismo, incluindo a construção de uma pequena unidade de alojamento, complementar à sua adega “boutique”. A linha do Tua traz ali o tão desejado turismo, cabendo uma fatia muito relevante aos viajantes internacionais. Com loja aberta e provas temáticas no programa de visitas, as boas intenções de expansão resvalam sempre nas dificuldades inerentes à escassez de mão de obra para trabalhos mais qualificados, seja para construção, seja para assessorar o enoturismo.
O Douro, ainda assim, é um verdadeiro diamante por lapidar, um gigante adormecido com potencial para ser um dos mais significativos e exclusivos destinos de Portugal. A família Fernandes e a Foz do Tua estão a fazer a sua parte para o acordar, criando vinhos que nos perpetuam a sua memória.
Nota: o autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.
(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2025)