O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Mesmo que isso implique um braço-de ferro com o seu quê de irritante entre os que os olhos vêem e o que as máquinas nos dizem. O material nem sempre tem razão.
Luís Francisco
Não sei se é uma tendência universal ou apenas mais uma das minhas manias. Considero-me uma pessoa de bom feitio, mas assumo a solene embirração que cultivo com as vozes dos aparelhos de GPS. Todas. De todos os aparelhos. Embirro tanto que evito ao máximo utilizar a tecnologia que – dizem – nos leva a todo o lado sem desnecessárias perdas de tempo, seja a decifrar pistas na desconcertante sinalética das nossas estradas, seja no contacto verbal com os locais que, as mais das vezes, muito falam e nada explicam.
Infelizmente, não nasci com capacidades de navegação nem sentido de orientação apurado que me permitam abdicar sem prejuízo das ajudas à navegação. E, portanto, de vez em quando lá tenho mesmo de escutar as directivas deterministas de quem me aconselha, “por favor”, a “abandonar a rotunda na segunda saída” – leia-se: é para seguir em frente – ou a, “dentro de 600 metros, seguir pela esquerda” na auto-estrada – que é, adivinharam, como quem diz para continuar na mesma via.
Para espiar o pecado capital de ceder à tentação da papinha feita em termos de adivinhar o caminho do ponto “a” ao ponto “b” sem passar pela casa da dúvida, obrigo-me a uma série de penitências. Primeiro, colecciono todas as histórias que me chegam ao conhecimento de gente que se perdeu ou se meteu em sarilhos por seguir cegamente o GPS, sem se dar ao trabalho de abrir os olhos para o que está à sua frente. Acreditem, não são assim tão poucas como isso e algumas com consequências desastrosas. Por outro lado, anoto fervorosamente todos os erros que detecto nas infernais maquinetas. Se a 950 metros de altitude o sistema de navegação indica 976, isso quer dizer que, umas dezenas de quilómetros antes, quando a indicação era de 14 metros de altitude, na verdade estávamos abaixo do nível do mar? Não quero ser alarmista, mas com isto do aquecimento global e da subida dos oceanos, dá para desconfiar…
Mas então, perguntará o leitor que teve a paciência de me acompanhar até este quarto parágrafo, se este tipo abomina assim tanto os sistemas de navegação, por que motivo foi dar o nome “GPS” a estas crónicas? Bom, a explicação é simples. Quando surgiu a ideia de recordar histórias passadas por esse país profundo em busca dos vinhos e dos enoturismos que nos encantam, a primeira história que me veio a cabeça foi a que se passou à chegada à Fundação Eça de Queiroz, ali para as bandas de Baião. Nessa breve, mas intensa, experiência congregaram-se os dois pecados originais da “gpsdependência” humana nos dias que correm: erros da máquina e cérebro humano desligado. Isso e um motorista de autocarro com sonos atrasados. Mas já lá vamos.
Tão perto e tão longe
“Chegou ao seu destino.” A voz do sistema de navegação – não sei se já vos disse que embirro com elas todas… Já? OK, adiante – soou calma, impessoal e autoconfiante como sempre. Mas estava tudo errado. Primeiro, não tínhamos chegado a lado algum. Segundo, aquilo onde estávamos não era um destino. Nem sequer um meio. Parecia mais um fim. Do mundo. A estrada de terra batida desaparecera e a vegetação dava-nos pela altura da janela. Se isto era a Fundação Eça de Queiroz, então o Parque Nacional da Peneda-Gerês seria a Biblioteca Nacional…
Paramos o carro e respiramos fundo. Como é que deixámos esta coisa guiar-nos até ao mato profundo sem desconfiarmos de que algo estava errado? A primeira tentação foi apontar a culpa ao sono desbragado do motorista do autocarro estacionado lá em baixo na estrada nacional, mas convenhamos que nenhum dos dois ocupantes da viatura tinha idade para se agarrar a desculpas infantis… Prometo que não me esquecerei de explicar esta cena do motorista, mas primeiro convém assumir que durante um breve período a evolução da espécie homo sapiens para homo sapiens sapiens se tornou uma falácia quando confrontada com os dois espécimes que ali coçavam a cabeça no meio de uma paisagem belíssima, mas completamente destituída de qualquer sinal de civilização.
“Chegou ao seu destino” em que aspecto? Seria o nosso destino regressar às origens primitivas e tornarmo-nos caçadores-recolectores naquele prado viçoso rodeado de grandes montanhas? A Fundação Eça de Queiroz, afinal, não existia e tínhamos feito centenas de quilómetros atrás de um embuste? Ou – hipótese igualmente válida naquele momento de estupor – não estávamos a ler bem a paisagem e havia mesmo ali uma casa, vinhas e muitas histórias para descobrir? Na dúvida, o melhor era sair do carro e descobrir.
Saímos. E logo percebemos que, à nossa frente, para lá da estrada nacional que de repente voltamos a descobrir, havia um desvio que descia para um vetusto conjunto de edificações em pedra, coberta por heras e rodeada de vinhas e árvores. À nossa frente, mas uns 20 metros abaixo do local onde nos encontrávamos… O erro do GPS tinha sido minúsculo, mas a barreira vertical era intransponível. Há pouco tínhamos passado naquela mesma estrada, lá ao fundo, e falhado o desvio. Seguiu-se uma bem-intencionada tentativa do GPS para nos fazer dar a volta, enviando-nos por uma estrada secundária, primeiro, depois por ruas estreitas numa aldeia deserta e, finalmente, por picadas cada vez mais residuais até ao esquecimento total do mato.
O sono dos justos
Após uma audaz inversão de marcha, regressámos à estrada e entrámos então no desvio para a Casa de Tormes, onde Eça de Queiroz remoeu saudades dos salões de Paris e escreveu algumas das melhores prosas da sua obra imortal. O caminho era óbvio e até estava sinalizado. Como fôra possível falhá-lo na primeira passagem? E então lembrámo-nos do motorista do autocarro.
Menos de 500 metros antes do desvio, à saída de uma curva do caminho, estava um autocarro estacionado na berma, o compartimento das bagagens aberto. De lá saíam as pernas de alguém que ali encontrara uma sombra para repousar. Tudo bem, quem somos nós para recusar a alguém o direito inalienável de passar pelas brasas? O problema é que, com o tronco metido dentro do compartimento, aquela alma sofredora acabara por estender as pernas, que agora invadiam o asfalto. A guinada do nosso carro terá sido silenciosa, ou então o sono era muito pesado, porque quando olhámos pelo retrovisor ele não se mexera, ignorando completamente o facto de que, instantes antes, poderia ter ficado umas dezenas de centímetros mais baixo…
Comentámos o incidente entre o divertido e o alarmado, debatemos brevemente a hipótese de voltarmos para trás para avisar o homem, fizemos piadas sobre a eventual graduação dos vinhos de Tormes. Enfim, distraímo-nos por completo, falhámos o desvio e confiamos cegamente nas indicações do GPS. E lá fomos parar ao fim do mundo. Sem podermos sequer invocar a desculpa de termos passado pelas brasas no processo.
Artigo da edição nº37, Maio 2020