Grande Prova – Bairrada Região de brancos, yes sir!

Estrutura, personalidade, equilíbrio, enorme longevidade. São (também) estas as características dos vinhos que fazem da Bairrada uma grande região de brancos. Mas há muito mais para dizer sobre isso…

TEXTO Mariana Lopes
FOTOS Ricardo Palma Veiga

A percepção da maioria dos consumidores é de que a Bairrada é uma região de grandes tintos — sobretudo Baga — e de grandes espumantes. E é, quanto a isso, nada a acrescentar. Mas os brancos… os brancos são qualquer coisa de muito especial. Embora a desvalorização dos brancos face aos tintos atravesse todo o país, quem está do lado da produção na Bairrada sabe bem que é mais difícil ou, pelo menos, mais irregular, atingir a magnificência nos tintos, mesmo tendo as uvas tintas ainda bastante mais encepamento, actualmente na ordem dos 63% (as brancas têm vindo a ganhar terreno, mas sem pressas). E isso deve-se à fragilidade e temperamento da casta Baga, que amadurece tarde e está dependente de condições de solo, exposição solar e clima quase perfeitas e muito específicas para aportar todo o seu esplendor. Já as principais uvas brancas utilizadas na Bairrada oferecem uma (con)sensualidade que é, aqui, difícil de bater.

Por ordem decrescente de encepamento, Maria Gomes, Arinto, Sauvignon Blanc, Bical e Cercial são as uvas que integram com mais frequência os brancos da Bairrada, a solo ou em lote, grupo onde ocasionalmente se insere a Viognier e a Chardonnay, esta também tradicional na região, mas muito vocacionada para espumantes. Segundo os últimos dados da Comissão Vitivinícola da Bairrada (CVB), Sauvignon Blanc e Arinto têm vindo a ganhar expressão — esta última, fruto da sua utilização em bases de espumante — bem como a Cercial, embora mais tranquilamente. Já a Bical tem revelado, infelizmente, um decréscimo nos vinhedos. Muito relevante para a caracterização da região é o facto de, nos anos 60 e 70, as uvas brancas terem sido quase exclusivamente plantadas na Bairrada em “field blend”, misturadas na vinha entre as tintas, acima de tudo para dar estrutura e elevar o álcool dos tintos. Isto foi, sem dúvida, um factor que influenciou largamente a interpretação da Bairrada como região tradicionalmente de tintos. Segundo Pedro Soares, presidente da CVB, vinificar as brancas em separado era, nesta altura, residual, e muitos dos vinhos brancos que se elaboravam tinham como destino a produção de espumante. “Há não muito tempo, na Bairrada, dizia-se que o branco era ‘aquele vinho que se bebe quando não há tinto’.”, lembra, e acrescenta que “por outro lado, algumas das marcas de referência de vinhos tintos do país eram precisamente de casas bairradinas, e mesmo outras, de fora da região, vinham aqui adquirir vinho a granel que engarrafavam com a sua própria marca”.

Grande Prova BairradaCom dois tipos de solo principais, argilo-calcários e franco-arenosos, verticalmente a Bairrada começa em Águeda e acaba em Coimbra, estende-se desde a linha costeira para o interior, até às serras do Buçaco e do Caramulo. Região de minifúndio, a sua dimensão média de vinha bate apenas no meio hectare, em parcelas dispersas, que vivem sob um clima atlântico temperado, com Invernos frios e chuvosos e Verões moderadamente quentes, suavizados pelos ventos vindos do mar e pelas grandes amplitudes térmicas, sendo muito frequentes as noites frescas. É uma região sem barreiras orográficas a oeste, o que estende “passadeira vermelha” à forte influência marítima, que por isso se sente em toda a região e que até a nível visual é possível de verificar: é muito característica a imagem mística (e misteriosa) das vinhas bairradinas, sobretudo na zona de Cantanhede, com um manto de nevoeiro matinal vindo do mar. Tudo isto influencia o DNA dos brancos da Bairrada e lhes dá uma personalidade altamente vincada, provando que as condições para a criação de brancos de topo estiveram sempre lá. Mas o que constituiu o pontapé de saída que nos trouxe até eles? Pedro Soares refere que “terá sido decisivo um quadro comunitário que permitiu investimentos em tecnologia, o replantio de vinhas exclusivamente para uvas brancas e, não menos importante, o nível dos recursos humanos. Algo que não correu tão bem assim para as uvas tintas, acabou por ser determinante para a qualidade das brancas e, consequentemente, para os vinhos”.

Quem sabe, sabe…

 Os 24 vinhos desta Grande Prova atestam tudo isto, e ao conversar com quem “suja as mãos” e os produz, ficamos a perceber ainda melhor de onde vem a excelência em tons de branco. Luís Pato sempre afirmou, peremptoriamente, que a Bairrada é uma região de grandes brancos. “Quando se tem uma acidez natural excelente, solos argilo-calcários e arenosos, e noites frias mesmo em Agosto, altura em que chega a haver uma diferença de 20 graus do dia para a noite…”, comenta o produtor. Pedro Guilherme Andrade, enólogo criador em nome próprio do vinho Trabuca, reforça, referindo que estes mesmos factores aliam “o poder e o volume dos vinhos à frescura natural”. Já António Braga, enólogo da Sogrape e autor do Série Ímpar Sercialinho, também aponta as amplitudes térmicas como essenciais e explica que “a componente argilo-calcária assegura um equilíbrio entre a retenção de água e a estrutura do solo” e que “estas condições promovem um ciclo de maturação longo, uma boa preservação de acidez e a construção de uma dimensão aromática ao nível das grandes regiões de vinho branco do Mundo”. Por sua vez, João Póvoa, produtor dos vinhos Kompassus (aqui com o estrondoso Private Collection 2016), indica exactamente os mesmos argumentos dos enólogos e acrescenta as manhãs bem frescas que se fazem sentir na Bairrada, especificamente na região de Cantanhede, onde estão as suas vinhas: “Cantanhede está muito perto de Coimbra, mas a temperatura é cerca de 3 graus mais baixa do que nesta cidade. Além disso, desde 2017, ano em que os incêndios destruíram a barreira de pinhal que tínhamos entre esta zona e a costa, que temos manhãs ainda mais frescas e com ainda mais nevoeiro vindo do mar”. Quanto à extraordinária capacidade que os brancos da Bairrada têm em perdurar no tempo e em envelhecer com enorme classe em garrafa — algo demonstrado pelos vinhos em prova mas, ainda de forma mais flagrante, pelos brancos com várias décadas de idade de grandes casas da Bairrada, como os das Caves S. João, por exemplo — António Braga esclarece o segredo reside na estrutura ácida e recorda que “a vinificação historicamente utilizada, uma vez sendo mais extractiva, promove uma componente fenólica que, ao longo do envelhecimento, se mostra indispensável como elemento estruturante”.

Outro denominador comum nestes vinhos, e factor altamente diferenciador, é o álcool moderado que apresentam. Frequentemente, noutras regiões mais quentes do país, obter um grau alcóolico mais baixo e maior acidez significa colher as uvas mais cedo, o que pode retirar outros componentes importantes como a estrutura e a complexidade aromática, ou seja, os melhores vinhos dessas regiões não têm necessariamente o álcool mais baixo. Na Bairrada, consegue-se o “melhor de dois mundos”, com a maior parte destes grandes brancos a ostentar números na ordem dos 12%/12,5%/13%. Todos os produtores e enólogos com quem falámos referem a maturação longa e suave, conseguida pelo binómio solo/clima, como a grande “culpada”, e Pedro Andrade desenvolve: “Na Bairrada, fazendo um bom controlo da uva na vinha, não somos surpreendidos tão facilmente como em outras regiões, onde, de um dia para o outro, o grau alcoólico provável dispara e consequentemente a acidez total baixa. Neste capítulo conseguimos naturalmente arranjar um excelente equilíbrio grau/acidez, o que faz com que os vinhos brancos da região sejam únicos nesse aspecto”. Em linguagem mais técnica, António Braga explica que, na Bairrada, “a curva de acumulação de açúcares apresenta um desfasamento com o surgimento dos precursores aromáticos e, dessa forma, consegue-se alcançar um perfil de maior expressão com um álcool potencial relativamente baixo e equilibrado”.

Grande Prova BairradaVinhos de classe mundial

Arinto e Cercial é o lote do Kompassus Private Collection branco 2016, o vinho vencedor desta Grande Prova. João Póvoa, que admite ter a Cercial como sua paixão, conta que este vinho nasce de vindima manual com escolha de cachos, desengace, e maceração na prensa de 8 a 12 horas. Depois, é feita uma leve prensagem e a Arinto faz a primeira fermentação em inox, acabando em barricas novas de 400 litros. Já a Cercial, fermenta totalmente em barrica usada. Ambos os vinhos permanecem 10 meses nas barricas e juntam-se apenas 10 dias antes do engarrafamento. O lote finaliza com estágio de 4 anos em garrafa. “Estamos cada vez mais a aumentar o formato das barricas dos brancos. Começámos com 300 litros, passámos pelos 400 e, em breve, iremos para os 600, sempre com tosta ligeira, para obter uma evolução ainda mais lenta no vinho”, adianta João Póvoa.

O Série Ímpar Sercialinho, da Sogrape (segundo mais bem classificado, ao lado do Trabuca), surgiu de um desafio que o presidente da empresa, Fernando Cunha Guedes, fez à sua equipa de enologia, pedindo-lhe que desse largas à criatividade e explorasse novos caminhos, regiões e castas, para fazer vinhos originais. “Para mim, foi o pretexto ideal para vinificar separadamente o quase extinto Sercialinho, plantado na nossa vinha de Pedralvites”, confessa António Braga. Esta casta é actualmente rara e, que se saiba, apenas a Sogrape e Luís Pato a detêm nas suas vinhas, na Bairrada. “Sercialinho, pela originalidade que representa no encepamento nacional, pareceu-me a escolha óbvia para voltar a incluir a Bairrada na ‘rota’ da Sogrape, sobretudo alavancada por um projecto altamente motivador como é a Série Ímpar. Esta é uma casta proveniente de um cruzamento feito pelo Eng. Leão Ferreira de Almeida nos anos 50. Em termos vitícolas, apresenta algumas dificuldades, como sensibilidade a doenças fúngicas e alta sensibilidade ao stress térmico. Na adega, tem uma componente aromática escondida e tensa, sobretudo enquanto vinho jovem, evoluindo mais tarde para uma complexidade difícil de igualar”, afirma o enólogo da Sogrape. O Série Ímpar Sercialinho 2017 fermentou e estagiou em barricas de 500 litros, com bâtonnage.

Pedro Andrade tem a Bical como uma das suas castas favoritas para brancos e foi essa que elegeu para criar um vinho que, segundo o próprio, tem o objectivo de recriar um branco de 1980 feito pelo seu avô, um vinho ”com bom volume de boca, uma persistência incrível e uma frescura inigualável”. O Trabuca Bical 2018 — do qual nasceram apenas 450 garrafas de 0,75cl (mais 30 Magnum) — vinifica em lagar aberto, sem desengace, com pisa a pé, e fermenta cerca de 6 dias no lagar antes de ir para depósito em inox, onde estagia durante o Inverno. Na Primavera, é trasfegado para barricas de 225 litros de carvalho francês, novas e usadas, onde fica durante 6 meses. E a parte mais original é que, depois disso, o vinho volta para o inox e lá passa mais um Inverno e Primavera, sendo engarrafado no início do Verão. O estágio em garrafa é de 12 meses. “A minha tendência é usar cada vez menos madeira nos vinhos, no entanto, todos os grandes brancos do Mundo passam em madeira. Temos de arranjar o equilíbrio necessário, para que, ao invés do que o que provamos seja adulterado pelo excesso de madeira, ela apenas confira complexidade e elegância”, expõe Pedro Andrade.

Havendo mais espaço, a vontade era falar ao pormenor sobre os 24 excelentes vinhos que aqui temos. Não sendo possível, resta dizer que quem pisa as terras bairradinas, quer seja porque lá nasceu ou porque foi para lá fazer vinho, sabe bem do que a região é capaz: brancos eternos, inesquecíveis, únicos. Nós também sabemos. Agora, só falta o Mundo saber.

(Artigo publicado na edição de Setembro 2021)

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