A liga dos duros
Outrora essencialmente conhecida por produzir grandes tintos – mas, então, apenas duas a três vezes por década –, a Bairrada é, actualmente, um paraíso (“à beira-mar plantado”, diga-se) para produzir todo o tipo de néctares vínicos. Inserida na região Beira Atlântico, a Bairrada é uma faixa litoral bem no centro do país, com ligeiro pendor a norte, compreendendo os concelhos de Anadia, Mealhada, Oliveira do Bairro e também, ainda que parcialmente, os de Águeda, Cantanhede, Vagos e até Coimbra. No que diz respeito a outras regiões vitivinícolas, delimita a Norte com Lafões (não se afastando muito dos Vinhos Verdes), e a Este a região do Dão. É um território muito específico, podendo ser resumido como um planalto de baixa altitude, circunscrevido ora pelo Oceano Atlântico a Oeste, ora pelas Serras do Caramulo e Buçaco a Este, com notórias tradições gastronómicas muito próprias, do leitão ao espumante, passando pela aletria.
Mas voltemos à história recente: a explicação para tão poucos anos excelentes, no que a tintos dizia respeito, centrava-se na relação entre casta e o clima atlântico que caracteriza a região, sobretudo em anos chuvosos. Com forte propensão para precipitação no início de setembro, era habitual a casta Baga – a principal tinta da região e tardia na maturação – não estar totalmente madura aquando das primeiras chuvas, originando o perfil menos consistente e mais rústico por vezes comum na região até há duas décadas. Claro que, nos anos mais quentes e secos, a Baga amadurecia bem dando origem a tintos encorpados que, mesmo acima dos 14% vol., retinham a acidez e os taninos necessários para uma excelente prova, mais a mais mantendo os vinhos longevos por décadas. Foram, essencialmente, esses tintos que deram fama à região.
Hoje, como sabemos, o clima não é exactamente o mesmo de há três ou quatro décadas, com uma subida notória da temperatura média anual, o que provoca uma vindima mais precoce e, com isso, reduz-se o risco de uma vindima à chuva. Todavia, a Bairrada é ainda caracterizada por verões amenos, para não dizer mesmo com noites frias e neblinas marcadas pelos ventos de Oeste e Noroeste claramente vindos do Atlântico. Tanto assim o é que, no Verão e início de Outono, a amplitude térmica chega a uns impressionantes 20ºC, com destaque para o eixo entre Oliveira do Bairro e Luso (passando por Anadia e Mealhada), sendo Cantanhede ligeiramente mais quente em média. Sucede que, actualmente, com a crescente procura por vinhos mais frescos e de acidez vibrante, e com o Sul e interior do nosso país a atingirem temperaturas elevadíssimas, o perfil atlântico e pouco solarengo da Bairrada é uma vantagem evidente, em particular nos brancos, aos quais nos dedicaremos nas próximas linhas (para não falar dos espumantes, onde a Bairrada é a principal região produtora e aquela com mais tradição em Portugal).
UVAS QUE EXPRESSAM O LOCAL
Se quanto ao clima já nos referimos, importa recordar que, ao nível dos solos, a Bairrada é caracterizada por manchas e afloramentos argilo-calcários de origem jurássica e triássica, perfis reconhecidamente privilegiados para vinhos distintos (em Portugal, o perfil mais parecido será o dos terrenos calcários de Bucelas, cujos DOC são obrigatoriamente brancos). Dentro da região, os melhores locais para vinho são ainda caracterizados pelos típicos “barros”, solos argilosos, mas sempre com o teor de calcário a marcar a identidade da região. Em Cantanhede, Mealhada, Anadia e, mais a Norte, em redor de Oliveira do Bairro, podemos encontrar vários solos calcários e margas ou calcários margosos, geralmente com alguma percentagem de limo bastante poroso. Não espanta, assim que a quase totalidade dos vinhos aqui provados venham de vinhas com presença de calcários, algo que se pressente em prova pela finura e frescura que manifestam, tanto os mais vinhos mais novos, como aqueles com mais estágio em garrafa. Uma excepção é o requintado Quinta de Foz de Arouce, de uma vinha de Cercial próxima da Lousã, cuja localização, e respetivo solo xistoso, levam a que seja certificado como Beira Atlântico.
Outro factor de sucesso são as castas nacionais bem-adaptadas à região, algumas delas quase exclusivas da Bairrada. Se, por um lado, encontramos a Maria Gomes (conhecida a Sul por Fernão Pires) – a uva branca mais plantada na Bairrada – e o Arinto, ambas castas presentes em quase todo o território nacional, por outro lado, uvas como Cercial e Bical encontram na Bairrada um lugar de eleição (apesar de esta última estar presente, com menor expressão, no Dão). Nas castas brancas não nativas, a Sauvignon Blanc e a Chardonnay são as mais representadas. Ora, se em algum lugar no nosso país faz sentido afirmar que as castas expressam o terroir, esse lugar é a Bairrada. Com efeito, mesmo as castas mais expressivas do ponto de vista da fruta e até “maduronas” — como a Chardonnay — revigoram na Bairrada e dão lugar a vinhos finos, recatados e de acidez crocante. O Arinto, por sua vez, já de si propenso a um perfil seco e com boa acidez, marca presença em muitos lotes, sendo eleita muitas vezes a solo nos topos de gama fermentados ou estagiados em barrica, como podemos verificar na presente prova (excelente, a edição única do vinho Doravante de uma vinha de Arinto entretanto já arrancada).
Se, por um lado, encontramos a Maria Gomes (conhecida a Sul por Fernão Pires) – a uva branca mais plantada na Bairrada – e o Arinto, ambas castas presentes em quase todo o território nacional, por outro lado, uvas como Cercial e Bical encontram na Bairrada um lugar de eleição (apesar de esta última estar presente, com menor expressão, no Dão). Nas castas brancas não nativas, a Sauvignon Blanc e a Chardonnay são as mais representadas.
O FACTOR HUMANO
Deixámos para o fim um dos factores diferenciadores da região mais desafiador: os produtores. A típica persistência bairradina, e a lendária capacidade dos bairradinos em perpetuar as suas tradições, faz com que, em 2023, estejam a ser lançados vinhos elaborados da mesma forma que o eram há mais de 50 anos, por exemplo com fermentações em tonéis antigos de madeira. São, em muitos casos e como esta prova demonstrou, produções mínimas (por vezes, pouco mais de 500 garrafas), de vinhos lançados com vários anos em garrafa (por vezes até 5 anos). É, certamente, a liga dos duros! Com efeito, existe um punhado de produtores absolutamente “clássico”, cuja qualidade e originalidade dos vinhos brancos é elogiada internacionalmente. Nomes e marcas como Quinta das Bágeiras, Casa de Saima, Frei João (Caves São João), Sidónio de Sousa, fazem parte desse lote juntamente com outros. Esta identidade é tão marcada que, mesmo gerações mais novas e produtores mais recentes, continuam esse legado de tradicionalismo assente em vinhas velhas e enologia pouco interventiva, como é o caso dos produtores Filipa Pato & William Wouters, Niepoort Vinhos (que entrou na região há mais de uma década), Luís Gomes (Giz) ou os projectos de enólogos como V Puro e Botão, entre tantos outros. Mas não se pense que a região não tem inovadores, alguns deles, aliás, pioneiros e responsáveis durante décadas por colocar a Bairrada no mapa internacional. Caso de Luís Pato, inovador nas mondas e na utilização de meias barricas francesas; ou de Carlos Campolargo, experimentando todo o tipo de castas, das mais típicas da região às internacionais, muitas vezes em estreme; e passando pelos vinhos ambiciosos e monumentais de João Póvoa, primeiro na Quinta de Baixo e, desde 2005, no projecto Kompassus. Igualmente importantes serão outros produtores de origem local, com várias gerações de vinhos “às costas”, e que persistem em apresentar, ano após ano, vinhos cada vez melhores respeitando o ADN da Bairrada, ou seja frescura, acidez e carácter, caso de Jorge Rama, António Selas, Regateiro, entre outros.
Com tantas razões para brancos de excelência, não espanta que os dados disponíveis apontem para a produção crescente destes vinhos certificados enquanto DOC Bairrada. Em 2022, foram quase 610 mil litros, um terço mais do que a média dos 10 anos anteriores. Boas notícias, portanto! Com este volume e, sobretudo, tanta qualidade a preços relativamente cordiais (os vencedores da prova custam menos de €30 a garrafa), não queira ser um daqueles a passar ao lado de alguns dos melhores brancos de Portugal…
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)
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Niepoort Vinhas Velhas
- 2017 -
Luis Pato Parcela Cândido
- 2021 -
Kompassus Private Collection
- 2019 -
Casa de Saima
- 2021 -
Quinta das Bágeiras
- 2021 -
Doravante
- 2017 -
Singular
Branco - 2019 -
Sidónio de Sousa
Branco - 2021 -
Quinta dos Abibes
Branco - 2017 -
Milheiro Selas
Branco - 2018 -
Medusa
Branco - 2018 -
Rama Carvalho Grande
Branco - 2019 -
Arco d’Aguieira
Branco - 2019 -
Trabuca Cercial da Bairrada
Branco - 2020 -
Regateiro Raízes de Família
Branco - 2019 -
Encontro 1
Branco - 2015 -
Ortigão 4/16
Branco - 2017 -
Messias
Branco - 2007 -
Marquês de Marialva
Branco - 2016 -
Giz Vinhas Velhas
Branco - 2020 -
Frei João
Branco - 2020 -
Casa do Canto 3 Barricas
Branco - 2018 -
Campolargo Barrica
Branco - 2021 -
Botão Vinha das Lamas
Branco - 2021