É impressionante, como o Douro consegue ser uma das regiões mais completas no mundo. A fama dos Porto não impediu que a região crescesse enormemente na dimensão dos vinhos não fortificados. Os DOC Douro, e em particular os seus tintos, são hoje uma referência nacional e mundial. E como como a nossa prova o demonstra, mais uma vez, a diversidade de estilos é acompanhada por um nível de qualidade ímpar.
Texto: Valéria Zeferino Fotos: Ricardo Palma Veiga
Desde a demarcação de 1756, praticamente tudo girava à volta do vinho do Porto (chamado na altura “vinho de embarque”, mesmo não sendo aguardentado ainda) que deu a fama à região e era uma grande fonte de rendimento para a economia nacional. Ainda nos anos 30 do século passado, o vinho do Porto representava 75% das receitas do sector do vinho português.
Os vinhos não fortificados eram produção residual e tinham designações pouco apelativas, quase de desprezo, como “vinhos de pasto” ou “vinhos de consumo”, não ostentando nem denominação de origem, nem regulamentação própria. Isto só aconteceu em 1982, quando “a designação “Douro” ficou reconhecida como denominação vinícola de origem, reservada aos “vinhos de consumo típicos regionais, brancos e tintos, tradicionalmente produzidos na mesma região demarcada que os vinhos do Porto”.
Antes disto existiam algumas marcas de vinhos de mesa. A Real Companhia Velha, por exemplo, tinha Grantom, Granléve e Evel (esta última marca, foi lançada em 1913 e existe ainda hoje) e Real Companhia Vinícola do Norte fazia Marquis de Soveral. Nos rótulos destes vinhos apareciam “tinto especial” ou “vinho maduro tinto” (para distinguir do Verde tinto, claro) e até “garrafeira”, mas nada de referenciar a região. Mesmo os primeiros Barca Velha também eram simplesmente “vinho tinto de mesa”.
A entrada de Portugal para a União Europeia em 1986 e o acesso a fundos comunitários deu o impulso importante aos produtores. A partir dos anos 90 e na viragem do milénio começa a moderna história dos DOC Douro, o que coincide com uma geração de novos enólogos, com formação universitária, talento e ambição e que hoje são bem conhecidos, mas na altura estavam a começar a sua aventura profissional. Jorge Moreira, Manuel Lobo, Francisco Olazabal, Tiago Alves de Sousa, Jorge Borges e Sandra Tavares da Silva, só para nomear alguns, que se vieram juntar aos pioneiros João Nicolau de Almeida ou José Maria Soares Franco, entre outros. Ao mesmo tempo, e na senda de nomes como Quinta da Pacheca ou Quinta do Côtto, aparecem os novos “vinhos de quinta”, como Quinta do Crasto, Quinta do Vale Meão, Quinta da Gaivosa, Quinta Vale D. Maria, Quinta do Vallado, Quinta da Leda, Pintas ou Poeira, muito deles tendo como mentor e impulsionador o visionário Dirk Niepoort.
O sucesso dos vinhos DOC e a crescente procura do consumidor pelos vinhos não fortificados motivaram várias casas produtoras de Porto a iniciarem-se nos vinhos de mesa. É o caso da Niepoort, Ramos Pinto, Quinta do Noval, Poças, Quinta do Vesúvio, entre outros. Mais tarde alguns pequenos produtores que forneciam uvas para o vinho do Porto aderem ao movimento e começam a criar marcas próprias.
Se no início, os vinhos do Douro entraram no palco internacional à boleia dos vinhos do Porto, ao longo das últimas décadas ganharam um lugar cimeiro alicerçado no mérito próprio. Não é de estranhar que, segundo os dados do IVDP, em 2021 a produção de vinhos com denominação de origem Douro tenha ultrapassado a produção do vinho do Porto, com 76.424.479 litros vs. 72.746.586 litros, respectivamente.
Os topos de gama com designações Grande Reserva e equivalentes representam 1,6% dos vinhos comercializados em volume e 5,7% em valor, com um preço médio de 16 euros por litro. Se bem que esta informação é relativa, porque nem todos os topo de gama do Douro ostentam estas designações de qualidade. A começar pelo próprio Barca Velha, mas também Chryseia, Quinta do Vale Meão, Poeira, Quinta do Vesúvio, Quinta da Manoella ou Pintas, entre muitos outros.
O Douro e a mudança
A mudança é inevitável e constante. Mudam as filosofias, práticas de viticultura, abordagens enológicas, hábitos de consumidores e os estilos de vinhos. E no meio disto tudo ainda acontecem as mudanças climáticas e as alterações demográficas na região que condicionam o resto.
Tiago Alves de Sousa, enólogo da nova geração da família Alves de Sousa, explica que nos anos 60 houve uma grande vaga de emigração que reduziu drasticamente a mão-de obra. O Douro precisava de soluções que passaram por mecanização, e acabámos por “adaptar a encosta à máquina”.
Nos anos 80 foi iniciado o chamados PDRITM, um programa de desenvolvimento assente em novas plantações e reestruturações da vinha existente, financiado com fundos comunitários. Mais tarde, passando o entusiasmo, ficou evidente o seu impacto ambiental negativo como a modificação de encostas, a alteração da sua cobertura vegetal e a erosão hídrica, que é um dos efeitos mais graves das plantações do PDRITM.
Há 25 anos as condições e os problemas eram outros: difícil maturação, falta de arejamento na vinha, muitas doenças – conta Jorge Moreira. “Importaram-se uma série de práticas e massificaram-nas rapidamente. A tradicional forma de condução das videiras, Guyot de tronco baixo, foi substituída pelo cordão bilateral ou unilateral. Na altura fazia sentido ter uma grande parede foliar para amadurecer cachos bem expostos. Agora não temos água para tanta folha. E temos de proteger os cachos da radiação solar e calores extremos”, continua o produtor e enólogo de Poeira, La Rosa e Real Companhia Velha. O cordão, devido a orografia e vinhas inclinadas, não permite escolher a exposição, e algumas vinhas apanham sol na mesma face do meio-dia até as 7 da tarde.
Já para Tiago Alves de Sousa, “o cordão é basicamente um painel fotovoltaico: pode ser bom para regiões com baixo nível de insolação, mas nós temos sol a mais. Com uma só camada de folhas o cacho fica mais exposto e vulnerável ao escaldão. No modelo Guyot, a vegetação envolve mais o cacho com 2-3 camadas de folhas e protege melhor.”
Para além disto, a poda em cordão implica muitos cortes na videira que são uma porta de entrada para as doenças do lenho. Exigência de produção e extensão de cordão acaba por esgotar a planta. Muitas vinhas plantadas há 20 anos nunca chegam a ser centenárias.
Alterou-se assim a forma de plantar vinha. Pelos viveiristas foram propagados os enxertos prontos para facilitar a plantação e diminuir a necessidade de mão de obra e o tempo que uma vinha leva a entrar em produção. Mas, dizem vários técnicos, parece que esta prática não ajuda ao desenvolvimento de raízes. Jorge Moreira descreve que o enxerto americano se regava cerca de 2 anos antes da enxertia, desenvolvia raízes, e esperavam-se mais 3 ou 4 anos para a formação da planta. Agora com rega em 3 anos pomos a planta a produzir. É mais rápido, mas as raízes acabam por não ser bem desenvolvidas e os exertos prontos têm maior tendência para doenças de lenho. Nas vinhas velhas não se encontram tantas.
Os porta-enxertos também são diferentes do tradicional. Segundo Tiago Alves de Sousa os porta-enxertos tradicionais (Rupestris du Lot, chamado “Montícola”) que quebra o xisto, mas induzia vigor vegetativo e a produção não acompanhava, foram substituídos por outros, que são todo-o-terreno e com maior potencial produtivo. As produções por videira duplicaram ou triplicaram, o que altera, naturalmente, as caracteristicas qualitativas das uvas no final da maturação. Para contrariar este efeito e amadurecer cachos mais abundantes, é necessária uma parede vegetativa mais ampla. E chegámos a um círculo vicioso.
Os desafios actuais
Os grandes desafios do Douro, actualmente: situações mais extremas, temperaturas mais altas, invernos mais secos que não repõem os níveis de água no solo e as precipitações mais agrupadas (cai uma grande quantidade de chuva em pouco tempo). A queda de granizo tornou-se numa constante anual. O ano de 2020 – foi continuamente seco, o 2022 também, exemplifica Manuel Lobo, enólogo da Quinta do Crasto. As vinhas velhas aguentaram-se melhor e pela primeira vez viram-se muitas videiras do PDRITM secas, não se sabendo se vão rebentar para o ano.
“A frequência e a duração de ondas de calor aumentou”, acrescenta Tiago Alves de Sousa, – “este ano não foi uma onda, foi uma maré de calor com o impacto forte nas maturações.”
Quando, no final dos anos 90 início dos 2000 se começou a falar da questão da rega, a maioria dos produtores era contra. Discutiam-se várias questões, sociais, económicas, etc., menos a questão técnica. Depois dos anos muito secos como 2015 e 2017, percebemos que temos mesmo de regar, mas outra questão se coloca agora – com que água?
Num mundo ideal, a rega é uma ferramenta poderosíssima, mas a água é um bem cada vez mais escasso. Por outro lado, a rega não é um penso rápido. Há formas de diminuir perdas de água por transpiração, por exemplo, a sombra no próprio solo diminui a evaporação. A plantação com densidade mais elevada também estimula o enraizamento, obrigando a raiz ir ao fundo por falta de espaço ao lado e ter acesso à água durante mais tempo.
Manuel Lobo explica que no Douro Superior, a vinha da Cabreira tem rega instalada que garante homogenidade produtiva e estabilidade qualitativa. Mas a viticultura de precisão é essencial. Usam sondas para obter informação e perceber qual é a capacidade de campo, quanto tempo a água se vai manter no solo e qual é a quantidade disponível para a planta e o consumo da própria planta.
“Não há uma solução universal que sirva para tudo”, – aponta Jorge Moreira. “Se seguirmos uma política mais intensiva na produção, temos que assumir que vamos ter de replantar a cada 20 anos”, refere.
Na casa Alves de Sousa, desde 2014 plantam vinha tradicional com bacelo e porta-enxerto antigo, de alta densidade em Guyot duplo, com co-plantação de castas (cerca de 15) a apontar para 8 mil videiras/ha. Uma espécie de “novas vinhas velhas”. “O factor mão-de-obra não pode ditar-nos como plantar” – defende Tiago. Plantam assim a vinha a pensar nos próximos 100 anos. A zonagem correcta é importante, considera Tiago Alves de Sousa. Há castas que estão plantadas nos sítios errados e em vez de fazer um pouco de tudo em todo o lado, tem de se prestar mais atenção às condições de cada zona específica. Ele também acredita que com desenvolvimento científico e experimental, vão surgir novas oportunidades, como por exemplo, o uso de drones agrícolas.
Vinhas e castas
A vinha na região do Douro ocupa mais de 43.000 ha, com a maior parte na sub-região de Cima Corgo com mais de 20.000 ha, cerca de 13.000 ha no Baixo Corgo e cerca de 10.000 ha no Douro Superior – dizem-nos os dados mais recentes do IVDP.
As castas tintas mais plantadas no Douro são Touriga Franca que ocupa 23% de plantação, Tinta Roriz com 16,4%, Touriga Nacional com 10,6% e Tinta Barroca com 7,4%. É um facto que as castas do Douro sempre foram pensadas na óptica do vinho do Porto. Quanto ao estudo de castas, no ultimo relatorio da Estacao Vitivinicola (então já designada por CEVD), elaborado em 1979 pelo Engº Gastão Taborda (o grande responsável pela recuperação da casta Touriga Nacional graças a inúmeros estudos experimentais que realizou sobre as castas do Douro) escreveu: “O número exageradíssimo de castas de uvas para vinho existentes na Região – mais de 130 – constitui um dos problemas mais graves e difíceis de resolver, mas que é preciso encarar a sério, dada a influência que a casta tem na qualidade do Vinho do Porto.”
A pouco e pouco, o universo das 70 castas tintas e 50 brancas foi grandemente reduzido, ao ponto de quase se resumir às 5 castas seleccionadas, que se encontram em maioria no encepamento e formam o blend típico dos DOC Douro (Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Barroca e Tinto Cão). E a verdade que as mesmas castas também produzem óptimos vinhos do Douro, complementando-se em qualidades.
A Touriga Franca, basicamente é a coluna dorsal de um lote, dá dimensão e volume. Tem uma película mais espessa, a folha é mais rugosa, o que permite aguentar melhor o stress hídrico e térmico, “só é pena não ter acidez da Touriga Nacional”, diz Manuel Lobo. Tiago Alves de Sousa acrescenta que a Touriga Franca é mais sensível ao stress térmico do que ao stress hídrico. Com o calor, pode chegar até 10-10,5% de álcool provável e de repente pára. Algumas nem com a chuva recuperam.
Já a Touriga Nacional confere frescura, elegância e também alguma estrutura. É muito flexível na adega. No entanto, exige algum cuidado com exposição solar para evitar que as folhas de base sequem e que fique com aromas sobremaduros. A Tinta Roriz nunca foi consensual. Tem um teor de tanino muito alto e quando produz em demasia, não amadurece bem e é muito dependente do terroir. Por isto raramente tem um papel a solo, mas há excepções, como é o caso da Quinta Nova e da Quinta do Portal, sendo ambos os vinhos excelentes exemplos da casta.
A Tinta Barroca é uma uva precoce, ganha açúcar elevado e perde acidez, ainda por cima, tem pouca cor. É importante para o vinho do Porto de estilo tawny, mas a sua participação nos topos de gama do Douro é muito reduzida. O Tinto Cão é o oposto da Tinta Barroca – casta muito tardia de ciclo longo e preserva bem a acidez; tem tanino notável, produz vinhos com frescura e algum potencial de envelhecimento. No entanto, nem todos os produtores apostam nesta casta. Manuel Lobo, por exemplo, acha que em termos enológicos não é muito interessante, adapta-se melhor para rosés.
As vinhas velhas com castas misturadas ainda se encontram em vários encepamentos no Douro e espelham o notável património varietal da região. E o DOC Douro foi a primeira denominação de origem em Portugal a regulamentar a designação “Vinhas Velhas” (com mais de 40 anos). A Quinta do Crasto foi a primeira no Douro a introduzir a menção Vinhas Velhas no rótulo (até chegou a ser marca registada…) e a produzir e comunicar, desde 1998, os vinhos das centenárias e famosíssimas Vinha da Ponte e Vinha Maria Teresa.
Hoje o Crasto faz tudo para preservar estas vinhas. Manuel Lobo conta que identificaram 54 genótipos na parcela Maria Teresa (com 111 anos). Dispõem da sua base genética e do campo de multiplicação, onde ficam os bacelos. Isto para garantir que quando é necessário substituir uma planta, o mesmo genótipo é plantado na mesma coordenada GPS.
Os vinhos das vinhas velhas são muitas vezes vistos pelo produtor e pelo consumidor como vinhos de qualidade superior pela sua autenticidade e pela história que contam. E nesta prova houve muitos belíssimos exemplos. Entretanto, é preciso lembrar que estes vinhos precisam de uma abordagem correcta nas adegas. Como muitas vezes têm castas com pouca estrutura, não aguentam muito tempo em barrica, sobretudo nova e com muita tosta. Perdem a sua autenticidade e delicadeza. Também tivemos em prova casos destes.
O estilo dos vinhos
O estilo de vinhos no Douro também está sujeito a mudanças. Já passou por uma fase de robustez, concentração e grande extracção. Basicamente, era uma versão seca dos vinhos do Porto. O uso de madeira, até há bem pouco tempo, também era excessivo. Aprendeu-se aplicar o estágio em barrica com parcimónia, e introduziram-se vasilhas de madeira de maior capacidade, para marcar menos o vinho. O momento certo de vindima em função da casta e da parcela tornou-se um ponto essencial. Os vinhos tendem hoje a ser mais frescos, mais leves, com menos extracção e concentração.
Jorge Moreira conta a sua experiência na Quinta de La Rosa e na Real Companhia Velha: “antes a extracção era total e profunda, agora cada vez mais usam bagos inteiros, cachos inteiros, prensam mais cedo, não deixam extrair tanto em macerações longas. Mesmo no seu Poeira, que começou há 20 anos e já na altura era um dos vinhos mais leves, frescos e ácidos do Douro, ele releva a diminuição da extração e acentuar frescura. As alterações no estilo e perfis dos vinhos, no entanto, devem sempre ter em conta as características da região, das suas uvas, do seu clima, do seu solo, no fundo a sua identidade, aquilo que faz os Douro cheirarem e saberem a Douro. “Não podemos exagerar e procurar fazer de um Douro um Borgonha”, alerta Manuel Lobo. E com inteira razão.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2022)