Magnum Carlos Lucas – Uma história de Dão e Douro

Completados os 10 anos da Magnum Carlos Lucas Vinhos, com um percurso feito sobretudo no Dão, o produtor inicia agora a sua aventura no Douro, com a Quinta das Herédias.

Texto: Mariana Lopes
Fotos: Ricardo Palma Veiga

 A empresa Magnum Carlos Lucas Vinhos foi fundada a 13 de Setembro de 2011, há 10 anos, mas já bem antes disso o produtor se tinha ligado à Quinta do Ribeiro Santo, em Carregal do Sal, propriedade que sempre foi o coração do projecto (apesar de a Magnum também operar no Alentejo, Douro e Vinhos Verdes). O seu pai comprou-a em 1995, replantou os vinhedos que lá estavam em solo arenoso e remodelou a casa, tendo o primeiro vinho, com o nome da quinta, sido um branco Encruzado de 2000.

No Dão, Carlos Lucas — “coimbrinha” mas desde sempre ligado à terra, formado em Enologia na sua cidade e especializado lá fora — já produz um milhão de garrafas, o que faz dele um dos maiores players da região. Na adega da Quinta do Ribeiro Santo, com 2000 metros quadrados e totalmente equipada, incluindo linha de engarrafamento e uma novíssima sala de provas, vinificam apenas os vinhos de segmento premium, os mais especiais, cerca de 400 mil litros. Falamos de coisas como o Ribeiro Santo Vinha da Neve, Excellence Grande Escolha, Automático, Envelope, E.T., Vinha de Santa Maria, entre outros. Este último vem da quinta com o mesmo nome que Carlos Lucas adquiriu em Cabanas de Viriato, dez hectares de vinhas com mais de 20 anos e, como é usual nestas propriedades antigas do Dão, uma casa senhorial apanhada já em decadência mas com grande potencial de recuperação. Mais recentemente, o produtor adquiriu uma outra, apenas a 600 metros da Quinta do Ribeiro Santo: a Quinta da Bela-Vista, com cinco hectares no total e dois de vinha dos anos 60, também com uma casa que será recuperada para ser um hotel de luxo, no futuro. A foto de capa desta edição da Grandes Escolhas foi, precisamente, tirada numa das varandas deste edifício oitocentista. Os primeiros vinhos daqui provenientes serão lançados no próximo ano, só tintos de parcela e em formato magnum. Com solo franco-arenoso profundo, a quinta (que visitámos com Carlos Lucas e o seu “braço-direito”, o enólogo bairradino Carlos Rodrigues) tem uma vinha velha de ensaio, já com 50 anos, com castas como Bastardo, Alvarelhão, Rabo de Ovelha, Cerceal, Rufete, entre outras. A estas somam-se variedaes como Tinto Cão ou Touriga Nacional, com a placa antiga que identifica a parcela ainda a dizer “Tourigo”, nome que se dava à casta no Dão. Estas três quintas perfazem, grosso-modo, os 30 hectares de vinha que a Magnum Carlos Lucas tem na região.

Duas verticais de luxo

Para conhecer verdadeiramente a evolução do projecto Magnum, nada melhor do que uma (ou duas) prova vertical. Começámos com sete colheitas do Ribeiro Santo Vinha da Neve Encruzado branco. A Vinha da Neve é uma parcela de 1 hectare localizada em frente à casa de Carlos Lucas, virada para a Serra da Estrela, e é por isso que se chama assim. Segundo Carlos, é uma vinha tardia com muito granito, “o que confere o lado bem salino que se sente no vinho”. Originando entre 2500 e 3000 garrafas, este 100% Encruzado começa a fermentação em inox e acaba-a em barrica nova, aí estagiando durante um ano. Ultimamente, a opção tem sido reduzir a tosta das barricas utilizadas. A vertical iniciou com o 2018 (prova no final da reportagem), agora no mercado, notando-se um claro fio-condutor que atravessa a gama, com variações normais de ano para ano, um perfil muito definido. No 2017 (18 pontos) não se nota propriamente, no nariz, mais um ano de envelhecimento do que a nova colheita, o que é sempre bom indicador. Sente-se bastante o lado vegetal mas já traz outras coisas como grafite. Sério na boca, com enorme volume. O 2016 (18) mostra-se bem mineral no nariz, mas na mesma linha dos outros, muito cremoso, sílex, final altamente salino. Já o 2015 (18,5), vinho em que se nota mais a mudança de cor, apresenta-se fechado no nariz, mas apimentado, com espargo branco, pedra molhada, levíssima líchia. Explode na boca, amplitude enorme, nervo e complexidade. O 2014 (18) é um vinho de notas evolutivas mais intensas, frutos secos, fruta branca madura, sempre com rasgo vegetal. A evolução não causa estragos na boca, continua tenso, fresco, complexo. Por sua vez, o 2012 (17,5) embrulha-se um pouco no nariz, guardando tudo para a boca que tem acidez vegetal elevada, amplitude e uma boa secura de conjunto. Por fim, o 2011 (18,5) tem um nariz fantástico e inebriante de sílex, pólvora, verdes frescos, flor margaça, hortelã, ainda a denotar a madeira. Enorme cremosidade, frescura e finesse neste vinho, muito vivo e nervoso, a dar um kick de acidez incrível.

Magnum Carlos Lucas
Carlos Rodrigues à esquerda, trabalha há vários anos com Carlos Lucas, no Dão.

Depois, foi a vez do desfile de Ribeiro Santo Excellence Grande Escolha tinto, um Blend de barricas com “um pouco de tudo”, indica Carlos Lucas, sobretudo Touriga Nacional, Alfrocheiro, Tinta Roriz e Tinto Cão. As cerca de 2000 garrafas são numeradas, sendo que a partir do 2013 foram vinhos lançados sempre 5 anos após a colheita. Este tinto faz maceração prolongada em inox e fermenta com leveduras indígenas. Fica depois em barricas novas de carvalho francês, de 225 litros, durante 14 meses. Começámos mais uma vez no mais recente, o 2016, agora no mercado. Depois, o 2014 (18) mostrou-se mais contido no nariz, com fruta silvestre igualmente pura e pimenta. Rústico, balsâmico, adstringência positiva, quase a lembrar um estilo bairradino. Secura final sempre boa. O 2013 (18,5) marca a mudança de rótulo e a introdução da garrafa areada “mate”. Tem bagas vermelhas, verniz, nota vegetal, pimenta branca. Super elegante, com óptima densidade e envolvimento, muito rico e sumarento. O 2012 (18) é bem expressivo nas notas de bosque, frutos silvestres e mentolados, eucalipto e musgo. Puro e naturalmente fresco, harmonioso, taninos super sedosos. O 2011 (18,5) é de nariz fino, violáceo, vegetal, com pimenta branca, levíssima pirazina. Na boca é que se releva grandioso, elegância, classe, finura, complexidade, polimento. Ainda rústico, para ficar. Já o 2010 (17,5) tem muita expressão de fruta, cereja madura, laivo vegetal, barrica perceptível mas bem integrada. Boca viva, taninos agitados mas elegantes, enorme amplitude e prolongamento. Muito chão de bosque é o apanágio do 2008 (18) levemente iodado, profundo, especiado. Fino e elegante na boca. Conjunto bem harmonioso, vivo. Para finalizar, o 2005 (17,5), que ainda tinha o designativo “Escolha”, apresentou-se profundo no nariz de bagas maceradas, notas terrosas, cogumelo, exótico na sugestão encerada, sândalo. Sedoso mas muito presente e elegante.

Onde o xisto encontra o granito

No início de 2019, a Magnum Carlos Lucas adquiriu a Quinta das Herédias, em Tabuaço, no Cima Corgo do Douro, mas em 2018 a poda já foi feita por esta empresa. Desta quinta fazia parte o Mosteiro de São Pedro das Águias, do século XII, onde os monges de Cister desenvolveram a viticultura. Este edifício faz ainda companhia à Quinta das Herédias, bem como um eremitério do século XI. Não estamos na paisagem duriense mais óbvia: o rio Tabuaço, o maior afluente do rio Douro, está entre a quinta e São João da Pesqueira, e os solos aqui são completamente mistos, de granito e xisto. Escarpas rochosas impressionantes rodeiam a propriedade, num Douro “limpo”, onde não há vislumbre da paisagem urbana menos atractiva. Estas escarpas altíssimas descem até ao rio Távora, e de manhã estão escondidas por um nevoeiro místico, que levanta quando o sol decide marcar presença. A casa, com vários andares e já parcialmente remodelada, encontra-se a 315 metros de altitude, com 10 quartos que serão preparados para receber clientes e amigos, num ambiente intimista. Já a vinha, que totaliza 30 hectares, vai dos 120 aos 400 metros. Quatro desses hectares são de vinhas velhas centenárias (com muitas castas, entre as quais Malvasia Preta, Tinta Francisca, Tinta Pomar, Rufete…) e 20% do encepamento é branco. Em 2020, a Magnum plantou ali quatro hectares com Viosinho, Rabigato e Gouveio. Também há Malvasia Fina, e as tintas Touriga Francesa, Tinta Roriz, Tinta Barroca, Touriga Nacional, Tinta Amarela, Sousão, e outras. Uma das características mais singulares é de facto o solo de transição, com o granito e o xisto a conviver.

Magnum Carlos Lucas
Cave de barricas do Ribeiro Santo.

“A minha intenção é fazer aqui quantidade aliada a qualidade, construir marca. Este ano já comprámos muitas uvas”, explica Carlos Lucas, que tem de alugar a adega cooperativa de Tabuaço, Caves Vale do Rodo, para vinificar, pois não é permitido construir na quinta uma adega de cariz industrial. A ideia, a médio prazo, é fazer uma instalação a 10 quilómetros dali. Na quinta existe uma pequena adega antiga com três lagares — dois lagares e uma lagareta, se quisermos ser mais precisos — e duas prensas tradicionais. Quanto visitámos as Herédias, os dois maiores lagares estavam cheios de garrafas, um com o Vintage 2019 e outro com o topo de gama, que se chamará Quinta das Herédias + Cento e Trinta Anos, que será lançado mais tarde. “Estou muito contente com este projecto, era o meu sonho ter algo assim no Douro, uma quinta com uma adega antiga e lagares”, confessa Carlos. Além da vinha, o laranjal é uma presença forte na quinta, bem como a floresta e o olival, que se estende por uns impressionantes 35 hectares contínuos de oliveiras centenárias, uma área nada comum no Douro, e a uma cota baixa, pouco mais de 100 metros de altitude. Daqui já fazem azeite, extraído a frio.

Magnum Carlos Lucas
Carlos Lucas, Paulo Mota e Bernardo Santos na Quinta das Herédias.

Mas porque ninguém consegue estar em todo o lado ao mesmo tempo, Carlos Lucas é assistido por Bernardo Santos, jovem enólogo de 24 anos que ocupa o seu tempo entre a adega do Dão e o Douro. Durante o início da pandemia, Bernardo esteve, inclusive, confinado na Quinta das Herédias, bastante tempo ainda sem televisão ou internet, a fazer sobretudo intervenções intensivas e necessárias nas vinhas, como retanchas ou rearamações. Porém, é Paulo Mota, enólogo residente em Vila Real, que representa “os olhos” de Carlos Lucas no Douro. Já tinham trabalhado juntos, e com a aquisição da Quinta das Herédias, regressou à empresa. Bernardo explica que tiveram “de fazer um grande trabalho de recuperação, o local estava altamente abandonado e escondido por vegetação, com algum património destruído. As vinhas velhas eram autênticos diamantes em bruto à espera de ser lapidados”. Aqui, Carlos Lucas pretende uma evolução de negócio sustentada. “Estamos a fazer uma marca com pés e cabeça, tentando não cometer erros e sem facilitar nos pormenores. Pegámos em marcas que já existiam e criámos referências novas. Quero também fazer histórico e, no futuro, aparecer com grandes vinhos”, declara, fazendo também referência à marca que já tinha nesta região e que mantém, Baton. O conceito de vinhos é, por agora, muita qualidade situada numa gama média e um ou dois super-premium, que Carlos consideram serem o grande potencial nas Herédias. A produção total ronda as 100 mil garrafas, daquela que é a nova paixão de Carlos Lucas, que se mostra totalmente feliz quando chega à quinta e brinca com o seu Cão de Gado Transmontano, um “bebé gigante” que está ainda a aprender a guardar a propriedade. O projecto está a dar os primeiros passos, mas já mostra, com os vinhos que entram agora no mercado, o que é capaz de fazer.

(Artigo publicado na edição de Novembro de 2021)

Magnum Carlos Lucas
O Baton é o Cão de Gado Transmontano que guarda as Herédias.

 

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