As muitas facetas de um artista dos vinhos

Passaram 25 anos sobre a criação do seu próprio projecto vitivinícola,
mas o papel de João Portugal Ramos na melhoria da qualidade dos
vinhos portugueses não está esquecido. Uma história de acasos, de
decisões acertadas, de ousadias. Um percurso notável, que teve agora
comemoração à altura, entre clientes, fornecedores e amigos.

 

TEXTO João Paulo Martins FOTOS Ricardo Palma Veiga

ENTRAR hoje numa adega e falar com o enólogo responsável é tão habitual que nos esquecemos que nem sempre foi assim e que, durante décadas, o que existia mais frequentemente era um técnico, não raramente um ‘self made man’ que tudo tinha apreendido de forma empírica, ao longo da vida. A própria palavra enólogo
era pouco usada e nenhum rótulo ou contra-rótulo indicava o nome do responsável dos vinhos. Estamos a falar do séc. XIX? Não, estamos a falar dos anos 70 e 80 do século passado, não há tanto tempo como isso. E foi no final da década de 70 que os primeiros engenheiros especializados em enologia saíram do Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa. Entre eles contavam-se João Portugal Ramos e José Maria Soares Franco, que tinham sido alunos de Manuel Vieira, professor e inspirador, já que era desde os anos 50 o verdadeiro precursor do modelo de enólogo-consultor que hoje conhecemos.

Quando conheci João Ramos, através do José Salvador (com quem eu trabalhava), ele era enólogo na Adega Cooperativa de Reguengos, mas já então prestava assistência em vários produtores, como a Tapada do Chaves, José Maria Almodôvar, Quinta do Carmo, Cooperativa de Portalegre. Tudo no Alentejo. A fama e a necessidade de enfrentar os desafios do pós-colonialismo (perda dos mercados africanos), reconversão das vinhas, maior selectividade nas castas usadas e entrada na União Europeia, fizeram soar os sinos a rebate e vários produtores perceberam que tinham de ter gente competente à frente dos destinos da enologia. Estava eu distraído e já João Ramos dava consultoria em Pegos Claros e Cooperativa de Pegões e a vários produtores no Ribatejo (Casa Cadaval, Quinta de Santo André, Lagoalva de Cima, Quinta Grande) e Lisboa (Quinta de Pancas). Tudo isto sem ter ainda projecto próprio.

Rumo à fama
João ganhou assim espaço nos jornais e começou a falar-se cada vez mais nos enólogos e na importância que tinham. Havia razões para isso: os vinhos do João Ramos eram muito bons e distanciavam-se claramente do que havia no mercado. Estávamos na época em que se começavam a fazer as primeiras experiências com barricas novas para estagiar tintos e tudo começou com o carvalho Limousin (hoje impensável…) e logo a seguir com o carvalho nacional. Foi a surpresa: de repente os consumidores descobriram sabores e aromas novos e o vinho, e as conversas à volta dele, foram crescendo.

Entretanto existiam já duas publicações especializadas na matéria, o que fez aumentar a visibilidade dos enólogos. Numa delas – o “Jornal de Vinhos” – chegámos mesmo a fazer um
painel de prova só com vinhos do João Ramos, algo que até então ainda não tinha acontecido. Um fenómeno semelhante começava então a acontecer no Douro, com uma nova “lufada” de ar fresco motivada pela chegada à região de João Nicolau de Almeida, Álvaro Van Zeller, Manuel Vieira (filho), Nuno Cancela de Abreu, José Maria Soares Franco, Luís Sottomayor, entre outros. Era também a época em que, mais para sul, se inovava como nunca se tinha visto, com Peter Bright a fazer os primeiros brancos fermentados em madeira nova (Cova da Ursa), os primeiros tintos de inspiração bordalesa – Quinta da Bacalhôa e Má Partilha, o primeiro Late Harvest. Tudo com o apoio de uma jovem enóloga – Filipa Tomaz da Costa, das primeiras, senão a primeira mulher a pisar terrenos até então sobretudo masculinos.

Trilhar o próprio caminho
O percurso de João Ramos apontava para caminhos que iriam obrigar a decisões drásticas: não iria ser possível manter o número elevado de consultorias e ao mesmo tempo desenvolver o seu projecto próprio. Começou no Alentejo (com a marca Vila Santa) mas rapidamente se estendeu ao Tejo (Falua), visando aí sobretudo o mercado externo. Já se imagina o que aconteceu: exportações a crescer, mais e mais pedidos de vinho que João não tinha, ida ao mercado comprar, crescer, crescer. Por várias vezes lhe ouvi a frase “fui obrigado a crescer”, significando isso que quando se está naquela linha que ou se cresce e avança à força toda ou se recua e a oportunidade se desvanece. João Ramos deu o passo em frente e nada ficou como dantes. Assim, as consultorias foram sendo entregues a outros enólogos (já ninguém iria passar sem eles) e o projecto próprio foi ganhando uma dimensão inesperada, centrado sobretudo no Alentejo e Tejo, surgindo mais tarde o Douro (Duorum Vinhos) e os Vinhos Verdes. Se qualidades lhe podem ser atribuídas, a de excelente provador é uma delas e ele gosta de provas cegas para tentar adivinhar o vinho. Mas já foi mais fácil, quando os vinhos eram poucos e os de renome ainda menos. Hoje a tarefa é bem mais ingrata, até porque a gestão de uma empresa tão grande lhe deixa pouco tempo para estar tranquilamente na sala de provas. Gestão aqui significa também receber clientes, o que acontece com enorme frequência.

Clientes que, quando ficam para almoço, são recebidos com pratos de caça, que toda a gente sabe que é o seu vício predilecto. Mas João até preferiria mão de vaca com grão em vez de perdiz estufada. Coisas do gosto de cada um…

A enologia em Portugal é tributária de João Ramos porque nos mostrou a diferença entre um vinho feito apenas com experiência e outro feito com saber, que tem “mundo” incluído. Os anos 80 foram uma época de ouro, de descoberta e inovação, e João Ramos esteve lá, no centro do furacão. Daí para a frente, o vinho português foi outra coisa.

J. Portugal Ramos em números
Quanto maior a nau, maior a tormenta, diz o ditado e a “nau” da J. Portugal Ramos Vinhos e empresas associadas já é bem grande. Trabalha em várias regiões – Alentejo, Tejo, Beira, Douro e Vinho Verde – e a produção atinge à volta de 6 milhões de litros de vinho. Cerca de 60% é exportado, sobretudo para o norte de Europa, EUA, Canadá, Ásia, Brasil, Angola e Reino Unido. O grupo vinícola inclui 140 pessoas permanentes. A produção tem origem quer em vinhas próprias quer noutras arrendadas. Contamos assim 400 hectares no Alentejo, 70 no Tejo, 13 em Foz de Arouce (Beira Atlântica), 126 no Douro e 30 nos Vinhos Verdes, a região mais recente onde foram feitos investimentos. Os vinhos criados abrangem todos os tipos sendo a produção de espumantes limitada às regiões do Tejo e mais recentemente no Vinho Verde, a partir da casta Alvarinho. O projecto do Douro – que já tem 10 anos – foi criado com José Maria Soares Franco (na foto), enólogo que tomou as rédeas da Duorum, uma empresa criada de raiz.

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