O Moreto e as talhas da Granja-Amareleja

Abegoaria e Adega Piteira

Entre a margem esquerda do rio Guadiana e a fronteira com Espanha, situa-se a sub-região alentejana da Granja-Amareleja. Um terroir único que é o berço do grupo Abegoaria, e onde a casta Moreto se revela na sua plenitude.

Texto: Mariana Lopes
Fotos: Abegoaria e Luís Lopes

 O Alentejo, região muito diversa em terroirs, climas e perfis de vinho, tem oito sub-regiões. Uma delas — a mais quente, com mais horas de sol e com solos mais pobres — é a Granja Amareleja. Compreendida entre a margem esquerda do rio Guadiana e a fronteira com Espanha, esta sub-região abrange as freguesias de Amareleja e Póvoa de São Miguel, e também parte das freguesias de Santo Amador e São João Baptista (concelho de Moura) e de Granja, Luz e Mourão (concelho de Mourão). Apesar do clima e solo agreste, a Granja-Amareleja sempre foi explorada para produções agrícolas pelos que lá passaram, sobretudo para vitivinicultura. Quanto a vinhas, ali convivem tipos bem diferentes: as mais recentes, cultivadas com as técnicas modernas; e as antigas, de sequeiro, típicas do minifúndio regional, muitas delas em solos arenosos e em pé-franco, ou seja, plantadas sem porta-enxerto. Mais recentemente, a criação da barragem e do lago do Alqueva veio amenizar a secura e as temperaturas muito elevadas que ali se fazem sentir no Verão, tendo sido precisamente na Amareleja que se registou a temperatura mais alta de sempre em Portugal, 47.4 graus Celsius, no dia 1 de Agosto de 2003 (não bastava ter sido sexta-feira, dia em que já apetece fazer pouco…). Assim, tanto estas particularidades edafo-climáticas, como as do encepamento presente na sub-região, tornam os seus vinhos únicos. A casta tinta Moreto, por sua vez, é a mais identitária da Granja-Amareleja, a mostrar nos vinhos a sua faceta mais elegante, estruturada, ampla e até fresca, expressando-se como não se expressa em mais nenhuma região. Mas já lá vamos…

Granja AmarelejaAbegoaria, Adega da Granja e Manuel Bio

A Abegoaria é um grupo vitivinícola que nasceu na Granja Amareleja (primeiro com o nome Encostas do Alqueva), cuja história não pode ser dissociada da família Bio. Tudo começou quando Manuel Bio, com origem também na margem esquerda do Guadiana, decidiu assumir a presidência da Adega da Granja (Cooperativa Agrícola da Granja), em 2007, depois do colapso total desta em 2002. O gestor e empresário teve três grandes razões para o fazer, a pedido da própria cooperativa: a grande visão social e da economia local que sempre teve; o facto do seu pai ter sido associado da cooperativa; e a fama de excelente gestor e impulsionador de negócios que todos lhe reconheciam, com percursos irrepreensíveis em grandes empresas. “Decidi, também pelo meu pai, ir a uma assembleia geral da Adega, para ver o que se passava. Depois, com a ajuda do banco, pagámos todas as uvas que estavam em dívida de 2002 a 2006. Hoje, não devemos nada a ninguém. O negócio flui e já investimos mais de dois milhões de euros”, contou Manuel Bio. Sem surpresas, revitalizou completamente a Adega da Granja e aumentou as suas vendas exponencialmente, e reabilitou a sua importância social e económica, sendo esta cooperativa hoje responsável por 95% da produção da sub-região, com cerca de seis milhões de garrafas produzidas por ano e cem viticultores associados.

Este foi o ponto de partida para que Manuel Bio quisesse criar sociedade com o enólogo José Piteira (responsável pela Adega da Granja) e Filipe Lourenço, para criar um projecto ambicioso que hoje tem o nome de Abegoaria, e que produz vinho em várias regiões portuguesas, mas também azeites, queijos e enchidos. Produz um total de nove milhões de garrafas por ano, mas na verdade faz cerca de 18 milhões de litros de vinho, fornecendo em formato bag-in-box para as principais redes de supermercado em Portugal. Para 2021, prevê-se uma facturação de 30 milhões de euros. Várias empresas de menor dimensão foram criadas entretanto, sob a “umbrela” Abegoaria, como a Amareleza Vinhos, especificamente no Alentejo, que inclui os vinhos GA e Piteira (feitos na Adega da Granja), e também os José Piteira, do pequeno projecto de talhas Adega Piteira, na Amareleja. A maior parte do projecto Abegoaria é virado para o consumidor português, com apenas 12% da produção exportada, o que vai de encontro à filosofia da empresa. Só na Granja-Amareleja, estes três sócios gerem dois terços de toda a sua produção.

Em 2015, deu-se a compra da Herdade Abegoaria dos Frades, localizada em Alqueva, assumida como a “a jóia do projecto”, a propriedade-mãe. Antes da criação do lago e barragem, a antiga família proprietária tinha ali 5000 hectares, mas agora esta Herdade inclui “apenas” 500. Portadora de uma luz impressionante, estende-se por uma planície que se pode observar, quase na totalidade, a partir do topo das duas torres circulares que descansam na entrada principal e que são os depósitos de água que alimentam toda a Herdade. Com uma bonita zona de piscina, 30 quartos actualmente em finalização, canil, adega (com 34 talhas) e lagar de azeite, a Herdade Abegoaria dos Frades será em breve um destino enoturístico de luxo. “Vamos fazer nesta adega algumas especialidades, no futuro, mas servirá sobretudo para os hospedes fazerem o próprio vinho e azeite”, revelou Manuel Bio. Ali, a área de vinha é de 55 hectares, com previsão deste número crescer para 95, em 2022. São sete as castas tintas presentes — Alicante Bouschet, Syrah, Cabernet, Marselan, Touriga Nacional, Aragonez e Petit Verdot — e cinco as brancas — Verdelho, Viosinho, Arinto, Antão Vaz e Roupeiro.

Granja Amareleja
Manuel Bio, administrador da Abegoaria e presidente da Adega da Granja.

Duas vinhas muito diferentes

Foi com Manuel Bio, José Piteira e Luís Bio (responsável de internacionalização e exportação), que visitámos duas vinhas emblemáticas e importantes para a Adega da Granja e para a Amareleza Vinhos, totalmente distintas uma da outra.

A Vinha da Luz é a vinha comunitária, de 87 hectares, da nova Aldeia da Luz, lugar que tem cerca de 300 habitantes. Foi plantada quando da construção da nova aldeia, em 2002, tendo sido oferecido um hectare a cada família “realojada” (a antiga aldeia ficou submersa pelo lago do Alqueva). Hoje, alguns dos proprietários de parcelas desta vinha já as alugam a outros, e a Adega da Granja compra uvas a muitos destes viticultores. “Esta vinha foi muito importante para a sub-região da Granja-Amareleja, porque antes de existir só havia vinhas ou pouco produtivas ou em decadência”, explicou Manuel Bio. Sendo (ainda) a maior da sub-região, esta vinha tem Alicante Bouschet, Aragonez, Trincadeira e Tinta Caiada, entre outras.

A outra vinha que visitámos nada tem que ver com a primeira: é uma vinha de Moreto com cerca de 80 anos de idade, plantada em pé-franco, na Póvoa de São Miguel. O solo, de quartzo, xisto e calhau rolado, é de base arenosa, com pouca argila. A antiguidade da vinha nota-se na partilha do espaço entre oliveiras e videiras, e também na baixa produtividade, de menos de três mil quilos por hectare. José Piteira revelou-nos aqui que é nestas areias grosseiras que está o melhor Moreto, casta que, até aos anos 90, representava 80% do encepamento da Granja-Amareleja. Empenhados em recuperar cada vez mais a variedade identitária, no projecto Amareleza Vinhos, Manuel Bio e José Piteira prevêem plantar, em breve, uma vinha só de Moreto junto à Adega da Granja.

Moreto e Adega Piteira

Na Amareleja situa-se a Adega Piteira, pequena e tradicional adega de talhas de José Piteira. Neste exacto sítio, aos doze anos, o enólogo auto-didacta iniciou-se no Vinho de Talha, aprendendo e ajudando o seu padrinho, José Amante Baleiro. Dedicando-se totalmente ao Vinho de Talha até 1999, pegou na sabedoria que o padrinho lhe transmitiu e adicionou-lhe a sua própria impressão digital, fazendo hoje na Adega Piteira vinhos únicos, de qualidade superior, plenos de carácter, para os quais muito contribuem as castas Diagalves (branca) e Moreto, esta última também vulgarmente presente na Amareleja, em vinhas de pé-franco.

Granja Amareleja
Adega Piteira em Amareleja

A uva Moreto, citada já em textos do século XVIII, tem bastante tradição na Granja-Amareleja, mas em outras partes do Alentejo não é muito bem-amada. José Piteira, fiel protector da casta, falou-nos dela e fez-nos compreender a dicotomia: “É uma casta difícil, que precisa de condições muito próprias, que praticamente já não se encontra em viveiros. Acabou por se adaptar, ao longo de muitos anos, na Amareleja, presente inclusive em vinhas com quase 200 anos. Aqui tem muita qualidade, concentração e equilíbrio, com cor e maturações boas, sobretudo pela característica arenosa dos solos, onde está plantada em pé-franco — porque os solos de areia são menos propensos ao ataque da filoxera — e pela sua elevada resistência ao calor, ao míldio, ao oídio e a pragas como os ácaros e a cicadela. Outra razão para ser boa aqui é o facto de estar plantada nos solos menos produtivos, porque antigamente os melhores solos destinavam-se a trigo, os menos bons a oliveira e os piores a vinha. E a Moreto precisa de stress hídrico, por isso dá-se bem nesses solos mais secos. Também o compasso entre as videiras e a condução são muito importantes. Aqui, não podemos retirar muita folha nem ter as cepas altas, isso só nas regiões mais frescas. A condução em taça é a mais favorável, como um compasso de 1.80 por 1.80 metros, no mínimo”. Para José Piteira, “na adega também é difícil, tem de se fazer muita selecção. No entanto, dá bastante acidez e é muito aromática, e isso é muito bom. Na adega percebemos porque é que foi uma casta muito arrancada, dado que chegamos a ter Moreto com 18% de álcool provável, de vindimas mais atrasadas. Também por isso já só há cerca de 80 hectares de Moreto. Há-que recuperá-la aqui na Granja-Amareleja”.

Granja Amareleja
José Piteira, mestre das Talhas

Os brancos e os tintos de talha José Piteira estagiam sempre dois anos em garrafa, antes do lançamento para o mercado. Na vinificação, não levam leveduras extra nem engaço, apenas o mosto e películas da uva. A manta, que sobe naturalmente por efeito do gás carbónico até ao topo das talhas, é recalcada e mergulhada duas vezes por dia, de manhã e ao fim da tarde. José Piteira explicou tudo isto junto às suas talhas e mostrou, inclusive, alguma indignação em relação à adulteração que alguns fazem ao processo ancestral. “Vejo muitas talhas demasiado cheias, e depois não corre bem. O corpo humano tem um membro que indica perfeitamente a altura a que as massas devem ficar na talha, que é o braço”, demonstrou. Ali, no meio dos idílicos recipientes de barro de 1800 litros, fizemos uma prova vertical — de 2016 a 2020 — dos vinhos de talha José Piteira, branco e tinto, e provámos também os “não-talha” GA Moreto — de 2015 a 2019 — e o GA Moreto Oak 2015, um Moreto estagiado em barrica. O objectivo foi cumprido: perceber que o Moreto e as castras tradicionais brancas (neste caso Diagalves, Roupeiro, Fernão Pires e Arinto) têm uma longevidade e expressão incríveis quando feitos em talha, e uma frescura surpreendente…

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2021)

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