O que (realmente) bebemos

Editorial da revista nº51, Julho 2021

Um jantar de amigos cujos vinhos me fazem reflectir, pela enésima vez, sobre a eterna questão do poder versus elegância. A sensação de dejá vu (ou melhor, “dejá escrito”) que me transporta a um editorial de há quase duas décadas. E a conclusão de que, por muito que as tendências vínicas vão mudando, na hora de “fazer figura”, o tipo de vinho que escolhemos não muda tanto assim.

 

Façamos o seguinte exercício. Perguntemos às amigas e amigos que entendem e apreciam vinhos de qualidade, qual a garrafa que levavam para a (inevitável) ilha deserta. Aposto que as respostas irão: primeiro, privilegiar os vinhos brancos; segundo, Borgonha e Champagne à cabeça, ou talvez (os mais patriotas) Dão Encruzado ou Monção e Melgaço Alvarinho ou Pico Verdelho. Muito poucos irão referir um tinto do Alentejo ou do Douro, um Bordéus ou Barolo clássicos, ou mesmo um Porto Vintage. Coloquemos então a questão de outra forma, mais directa: qual o perfil de vinho que mais apreciam? Garanto que 99% dos apreciadores inquiridos irão apontar para a santíssima trindade dos atributos vínicos: leveza, elegância, frescura.

Agora deixemo-nos de exercícios e passemos à realidade. Cenário: um lauto jantar entre cinco amigos, na casa de um deles, onde foi pedido a cada um que levasse uma garrafa. Atenção, não se escolhe uma garrafa qualquer para um jantar entre gente que sabe de vinho. É preciso algo que não se beba todos os dias, que impressione, que nos permita sair no final com a sensação, mesmo que enganadora, de que o “vinho da noite” foi o nosso. Então, dito isto, e depois dos espumantes/champagnes de entrada, que vinhos estiveram na mesa? Um branco “vin jaune” de Jura invulgarmente bom (pelo menos para mim, que não sou fã da região) e quatro tintos, todos eles de elevadíssimo nível: um Rioja “moderno”, um “super toscano”, um Toro “tradicional” e um Bairrada “clássico”. O que estes vinhos tinham em comum? Ainda que a nenhum faltasse frescura e alguns manifestassem mesmo uma certa elegância, nenhum deles encaixava propriamente no estereotipo de “leve, elegante e fresco”.

Onde é que eu quero chegar com tudo isto? Apenas salientar que, apesar de em nossas casas (e falo por mim), preferirmos beber vinhos mais leves no álcool e mais vivos na acidez, quando queremos mesmo impressionar, arrasar a “concorrência”, mandamos o vinicamente correcto às malvas e vamos buscar a artilharia pesada. E isto, note-se, entre pessoas que têm acesso a vinhos ultra premium. Se olharmos para o que bebe a esmagadora maioria dos consumidores do mundo, consumidores comuns que não têm de “esnobar” (deliciosa expressão brasileira!) ninguém, a cor, a concentração, a opulência e, em muitos casos, o álcool, são os maiores atributos.

Então, em que ficamos? Poder ou elegância? Respondo com um excerto de um editorial que escrevi no longínquo ano de 2002. “Quem possui algum interesse pelos grandes vinhos do mundo, já provavelmente ouviu falar na dicotomia ‘Bordéus-Borgonha’, como exemplo de dois estilos de vinho completamente opostos: de um lado o poder e a concentração, do outro lado a elegância e a finura. Normalmente, os apreciadores procuram colocar-se de um lado ou do outro, defendendo a sua ‘dama’ com diversos tipos de argumentos. É uma discussão fútil, quanto a mim, porque o poder e a elegância não são incompatíveis. Ou seja, o grande vinho é quase sempre, ao mesmo tempo, poderoso e elegante.“

Já agora, para aquele jantar, fui eu que levei o Bairrada clássico. O vinho, Baga de vinhas velhas, tem 14,5% de álcool, garra, tanino, acidez, muito sabor e frescura. A elegância também virá, com o tempo em cave. E, claro, em minha opinião, como não podia deixar de ser, foi o vinho da noite.

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