Numa cidade habituada a bacalhau e peixe grelhado, abriu um restaurante que faz a sua própria manteiga e serve gemas inseminadas com tomatada. O ovni chama-se Anna’s e tem à frente um chef-doutor e uma emigrante de regresso às origens.
TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Palma Veiga
FALA sempre como se estivesse na iminência de uma grande aventura. Com apenas 29 anos, tem a energia de uma criança grande — bem grande — e o entusiasmo de um explorador. “Podem vir até aqui”, diz, puxando-nos para a cozinha. Mesmo à entrada, há uma vitrina com rebentos em vaso e ervas aromáticas, lá dentro a roda a servir de portão, depois os fogões. Nas portas dos frigoríficos, vêem-se números escritos pelo seu punho, lá dentro mais códigos indecifráveis em barrigas de porco seladas em vácuo, molhos, pickles caseiros. “Tudo tem de estar embalado e registado. Sou muito organizado e muit’a maluco.” As anotações podem ser defeito de formação. Tiago Emanuel Santo é licenciado em Geografia e mestre em Gestão do Território. Actualmente, será o chef português mais culto da sua geração ou, pelo menos, o que mais sabe sobre gastronomia regional. Na Universidade Nova de Lisboa, onde está a preparar o doutoramento, tem-se dedicado a registar todos os produtos tradicionais portugueses, alguns já esquecidos, um documento com 800 entradas.
Esta paixão nota-se assim que começa a servir o menu de degustação do Anna’s, o seu novo projecto, em Aveiro. O restaurante abriu em Maio e pretende mostrar outra cozinha à cidade, criativa, inquieta mas confortável, feita de sabores nacionais e técnicas sofisticadas. A decoração é limpa, madeiras claras e cadeiras Eames brancas.
Em cima da mesa, está agora um dos azeites preferidos de Tiago, o Angélica, extraído de um pequeno olival em Moura. O produtor é tratado pelo nome, como se fosse um amigo. São todos: é o Gonçalo dos azeites, o Arlindo das carnes maturadas de Alcains, o Leonardo das ostras de Aveiro. Na boca, o Angélica surge com surpreendentes notas amargas e picantes, pouco comuns em azeites alentejanos. “O Gonçalo colhe as azeitonas à mão, ainda verdes. E depois junta as variedades cordovil e verdeal à azeitona galega”, explica Tiago.
Num pratinho ao lado, o chef despeja agora outro azeite, guardado numa garrafa sem rótulo. “Este é único. Vem de umas oliveiras centenárias da zona onde se faz o Boom.” O Boom é um festival de música electrónica, perto de Idanha-a-Nova, também conhecido pela abundância de outro tipo de substâncias, nem todas lícitas. Quando a tenda se desmonta, os festivaleiros costumam levar consigo os cogumelos mágicos mas deixam as azeitonas, uma cultura antiga na região. “Diz-se que já ali se fazia azeite no tempo dos romanos”.
As histórias, as pessoas, vão acompanhando os pratos. Nada é só o que parece. Uma manteiga não é uma manteiga. “Fazêmo-la nós, aqui. Descobrimos uma senhora da região que tem uma vaca e que nos fornece o leite não pasteurizado.”
Replicar o conceito noutras cidades
Algumas das criações de Tiago, como o extraordinário bolo lêvedo dos Açores ou o pastel de molho, já o acompanham há algum tempo. Antes de rumar a Aveiro, o chef assumiu os comandos do restaurante do Hotel Areias do Seixo, perto de Torres Vedras. Esse posto deu-lhe palco, mas foi ao mesmo tempo uma honra e uma herança difícil. Leonardo Pereira, ex-chef do Noma, o premiadíssimo restaurante de Copenhaga, tinha acabado de deixar o lugar, elevando a fasquia.
A nova aventura de Tiago não parece ser menos emocionante. O projecto nasceu da vontade e do investimento de Ana Pinto e da sua irmã (também chamada Ana, daí o nome do restaurante, Anna’s). Naturais de Aveiro, emigraram para a Venezuela muito novas, onde acabaram por gerir uma rede de supermercados e pastelarias. Com a crescente onda de violência no país, contudo, decidiram regressar a Portugal. “Mantemos alguns negócios lá, mas estamos a vender. É muito perigoso viver ali”, diz Ana Pinto, que se junta à mesa e procura refrear a velocidade com que o seu chef debita novas ideias, novos pratos, novos restaurantes.
Por esta altura, ao lado da mesa já jaziam várias garrafas que o chef tinha seleccionado para o pairing, tudo coisas exuberantes e difíceis de encontrar nos supermercados. O menu de degustação acontece em sete momentos (50€) e pode ser acompanhado por dois tipos de harmonizações, uma de 25 euros, outra mais premium, de 50 euros. Isto ao jantar. Ao almoço, o conceito — e o preço — são diferentes. Em Novembro, altura da nossa visita, por apenas 10,50€ podia comer uns filetes de peixe galo com um arroz cremoso de ervilhas, mais uma entrada (que podia ser uma canja de bacalhau com ovo escalfado) e um copo de vinho. Os pratos mudam diariamente.
A ideia de Tiago é que o conceito do Anna’s seja replicado. “Queremos fazer restaurantes deste nível noutras cidades médias do país”, diz. Mais à frente, há-de adiantar que a capital também não perde pela demora. “Vamos abrir em Lisboa. E vai ser bombástico. Um espaço enorme”, atira. O conceito é sempre o mesmo: fazer tudo em casa, dos pães aos pickles, passando pelos molhos e pelos fermentados.
A conversa é interrompida por causa de um ovo que é preciso inseminar com tomatada. Regresso à cozinha. Na banca da roda, o chef agarra numa seringa onde está o molho e espeta-a na gema. A primeira rebenta. “Dêem-me outra”. A segunda rebenta. “Não ficou bem. A gema tem de estar fresca se não acontece isto. Outra”, zanga-se. A operação repete-se até o chef achar que merece ir para a mesa.
No final, a imagem é surpreendente. A gema assenta numa areia e tem por cima um pequeno merengue, branco como um iceberg, dando um ar dramático ao conjunto. Quando a empregada leva o prato para a sala, os clientes ficam a olhar, como se fosse um ovni. Um ovni gastronómico a aterrar na Ria.