“Pioneiro do Douro moderno”. Assim classifiquei Domingos Alves de Sousa numa das várias peças que publiquei sobre o projecto Quinta da Gaivosa ao longo das últimas décadas. E quando se comemoram 30 anos sobre a colheita do vinho com que tudo começou, a frase mantém-se mais actual do que nunca. Também por isso se justifica revisitar Gaivosa e a sua história, escrita com vinhos, no caso, nove, três por cada década.
TEXTO: Luís Lopes FOTOS: Domingos Alves de Sousa
Lembro-me bem do impacto que em mim teve, na época, o primeiro Quinta da Gaivosa, um tinto de 1992 que me impressionou. O vinho tinha madeira a mais, claro, como praticamente todos os tintos ambiciosos dos anos 90. Mas disso só me vim a aperceber quando o voltei a provar mais tarde, talvez sete ou oito anos depois, que nisto da apreciação de vinhos não apenas não se nasce ensinado como o nosso palato vai mudando com o tempo.
Absolutamente certo é que, quando o Quinta da Gaivosa nasceu, muito poucos vinhos do Douro ambicionavam tão longe em qualidade e notoriedade. Barca Velha e Quinta do Côtto eram clássicos reverenciados, mas o Douro moderno, no que aos vinhos não fortificados respeita, estava ainda por construir e marcas como Duas Quintas e Quinta da Gaivosa definiam o caminho para os que viriam a seguir.
Cheguei à Quinta da Gaivosa e a Domingos Alves de Sousa pela mão de Anselmo Mendes, na altura enólogo consultor na casa. Casa essa onde permaneceu até 2013, passando então, por inteiro, a pilotagem enológica a ser feita por Tiago Alves de Sousa, da nova geração da família, que já trabalhava ao lado de Anselmo há uma década, e com quem este partilhava a sua enorme experiência e conhecimento. Os vinhos da Gaivosa vão reflectindo estas mudanças e são também, tal como a vida, marcados por ciclos, não apenas os da Natureza mas também os das ideias e conceitos.
Na base de tudo, esteve e continua a estar Domingos Alves de Sousa, pedra basilar do projecto. Foi ele que, logo em 1992, determinou que o tinto Quinta da Gaivosa só sairia à rua nos anos de qualidade superior. Assim, depois da colheita estreante, vieram 1994 e 1995, esta última a que colocou a Gaivosa, definitivamente, “no mapa”. A seguir 1997 e 2000, todos eles elaborados a partir da vinificação conjunta das melhores parcelas desta propriedade situada na margem direita do rio Corgo, a poucos quilómetros de Santa Marta de Penaguião. Hoje com 25 hectares de vinha, já na altura havia muito por onde escolher, desde vinhedos bem antigos a mais recentes, abarcando todo o tipo de altitudes e exposição solar.
Com o 2000 encerrou-se um ciclo, para se abrir outro com o Quinta da Gaivosa 2003. Nesse ano, um esforço adicional possibilitou finalmente a vinificação isolada das pequenas parcelas, identificando as características de cada uma e selecionando com maior rigor os vinhos que viriam a fazer parte do lote final. Deste trabalho vieram também a surgir outros tintos de renome, como Vinha de Lordelo ou Abandonado, mas isso é outra história, para outro momento. Para o que agora nos interessa, bastará saber que todos os Gaivosa que se seguiram obedeceram já a um trabalho de lote a partir das barricas onde os vinhos de cada parcela descansavam sem misturas. Nasceram assim os Quinta da Gaivosa que faltam: para além do já citado 2003, também 2005, 2008, 2009, 2011, 2013, 2015, 2017 e, agora, 2019.
São 14 vinhos lançados no mercado ao longo de três décadas, não se pode dizer que tenham abusado. Entretanto, importa referir que a concorrência apertou, sobretudo a partir de 1999, quando excelentes vinhos que se tornaram referência no Douro se impuseram num mercado de topo, onde deixaram de estar apenas meia dúzia de marcas. O Gaivosa, porém, não se amedrontou nem mudou o rumo nem o estilo, assente mais na elegância do que na concentração. A família Alves de Sousa preocupou-se, isso, sim, em garantir o futuro desta e das outras marcas, sobretudo ao nível vitícola. Assim, para além da preservação das vinhas antigas, verdadeiros cofres onde o património genético das videiras é guardado e acarinhado, foram plantadas vinhas novas a partir de conceitos diversos. Grande parte da propriedade (45%) assenta em vinhas tradicionais, com as castas misturadas e idades que vão dos 45 aos 120 anos; mas existem também vinhas ao alto, patamares e aquilo a que Tiago Alves de Sousa tem devotado muito do seu tempo e paixão e a que chama “vinhas tradicionais novas”. Este modelo, que se tornou regra na Gaivosa a partir de 2014, replica as vinhas antigas procurando preservar a topografia natural da encosta, mantendo os antigos muros de xisto, com as videiras plantadas segundo as curvas de nível, em alta densidade (8.000 pés/ha), condução em Guyot duplo e mistura “organizada” das castas, com diferentes variedades co-plantadas por parcela e organizadas por linhas. Mais de 50 castas tintas e 20 brancas fazem hoje parte deste património.
Mas deixem-me, para finalizar, voltar ao Quinta da Gaivosa tinto, de onde me desviei por instantes, até porque ainda vão passar uns bons anos até as vinhas novas terem idade e estatuto para entrar na sua garrafa. Houve um terceiro ciclo na já longa história da marca, que ocorreu a partir da vindima de 2016 com a construção da nova adega. Mais e melhores condições ao nível da vinificação e estágio significam poder dar mais atenção aos vinhos que estão a fermentar nas cubas ou a estagiar nas barricas. E, sobretudo, significa não os apressar. Lançar agora o Quinta da Gaivosa tinto de 2019, quando várias prestigiadas marcas do Douro já foram “obrigadas” pela pressão do mercado a apresentar os 2020, é também uma forma de Domingos Alves de Sousa mostrar ao mundo que não tem pressa. E, na verdade, para quem faz Gaivosa há 30 anos, o tempo tem outro significado.
(PROVA VERTICAL DE REFERÊNCIAS QUE JÁ NÃO ESTÃO NO MERCADO)
18 A
Quinta da Gaivosa tinto 1992
Ano de maturação tardia, que gerou vinhos mais delicados, com menos álcool (12,5%). Estagiou em barricas de carvalho português. A evolução é notória, mas está surpreendentemente bem, notas de musgo, tabaco, balsâmicos, erva seca. Muito polido, com notável frescura de boca, cheio de equilíbrio, dá muito prazer a beber. Talvez a melhor garrafa desta colheita que bebi nos últimos anos.
19 B
Quinta da Gaivosa tinto 1995
Vindima de boas maturações, colheita precoce, um vinho que impressionou vivamente quando foi lançado. Estagiado em carvalho francês em vez do nacional, mais de duas décadas depois mantém o nível de excelência que apresentou na época, ainda com fruta no aroma, musgo, taninos presentes a dar estrutura. Muito fino, muito impactante, com belíssima frescura, um vinho histórico que, ainda hoje, continua a fazer história.
17,5 A
Quinta da Gaivosa tinto 1997
Vindima quente e concentrada, mas equilibrada. Ao contrário do que aconteceu com o 1992, esperava mais deste, sobretudo no aroma, muito balsâmico e apimentado, com bela evolução mas fruta mais apagada. Melhora muito na boca, fresco, equilibrado e apetecível.
18,5 B
Quinta da Gaivosa tinto 2000
Nevou na Gaivosa em janeiro, num ano heterogéneo, em que a natureza foi compensando frio com calor, seca com chuva. Estava tudo no ponto na vindima e o vinho revela essa fruta de excelente qualidade, ainda bem presente, bagas e morangos, notas fumadas. O equilíbrio ácido é perfeito, magnífica presença de conjunto.
18,5 B
Quinta da Gaivosa tinto 2003
O ano de estreia de Tiago Alves de Sousa na equipa de enologia foi muito quente e seco, mas a vinificação por parcela e alguma chuva em setembro permitiram esbater as agruras do clima. O vinho está belíssimo, com leves tostados, fruta muito boa, complexos balsâmicos, tabaco, alguma idade a dar complexidade tabaco. Taninos de seda, e a frescura típica da Gaivosa a equilibrar tudo.
18 A
Quinta da Gaivosa tinto 2009
Ano com dois grandes picos de calor, em agosto e setembro. Pela primeira vez, barricas usadas juntaram-se às novas. Mostra muito boa fruta madura, ainda com traços de juventude. Muita sedosidade de taninos, num registo polido, texturado, com corpo cheio, alguns amargos de esteva, amplo e envolvente.
19 B
Quinta da Gaivosa tinto 2011
Muito míldio reduziu a produção e, quando foi preciso, o verão foi ameno, com maturações lentas e preservando a acidez. A ausência de chuva fez o resto, uma vindima portentosa. Bastante jovem, concentrado como é típico do ano, menta e esteva, um tom sisudo e austero que lhe fica bem. Um portento na boca, extremamente sólido, texturado, com taninos que nunca mais acabam, ainda a precisar de tempo para se mostrar. Seco, sério, tremendo.
18 B
Quinta da Gaivosa tinto 2015
Ano generoso na quantidade e qualidade, com vindima precoce. A barrica está evidente, mas sem excessos, um tom mais maduro na fruta, bagas e mirtilos. Bastante encorpado, concentrado e intenso, sedoso, com taninos muito redondos. Sente-se um ano quente mas o vinho tem frescura, com final amplo, pontuado por notas de fruta ácida.