Quinta das Bágeiras Garrafeira: Um branco à frente do seu tempo

Nasceu em 2001 quando, em Portugal, ainda não se dava valor a brancos complexos e de guarda. Era, antes de existir, o branco que Mário Sérgio Nuno queria produzir, mas ainda não tinha. Hoje, 19 edições depois, é provavelmente o branco que todos queriam ter.

Texto: Mariana Lopes
Fotos: Anabela Trindade

No início dos anos 2000, numa feira de vinhos em Lisboa, Mário Sérgio Nuno apresentou um branco, a medo, a David Lopes Ramos. Nesse mesmo evento, o jornalista e crítico de vinhos e gastronomia, orientou uma prova comentada de vinho com queijos e, igual a si próprio, fez algo que na altura era tudo menos convencional: deu a provar, mesmo no final da sessão e a uma sala cheia, um branco com queijo Nisa. Era o Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2001, a primeiríssima colheita. O produtor tinha estado durante toda a prova, no fundo da sala “à espera de levar porrada”, como o próprio diz, pois “não era um   vinho compreendido pelas pessoas”. Mas todos os presentes adoraram. Era uma vez um branco proscrito e oprimido, 22 anos depois considerado com um dos melhores de Portugal.

Mário Sérgio Alves Nuno criou o projecto da Quinta das Bágeiras em 1989, pegando em todo o know-how aprendido com a sua família, que até então produzia vinho a granel para as caves da região. Juntando vinhas do seu avô paterno com outras do avô materno, perfazendo 12 hectares, fundou nesse ano, segundo o bairradino, a primeira empresa vinícola da Bairrada em mais de duas décadas.

“Bágeiras” era a vinha para onde o avô de Mário Sérgio, Fausto Nuno, costumava ir todos os dias trabalhar, montado na sua bicicleta “pasteleira”, hoje em exposição na adega que fica na aldeia da Fogueira, concelho de Anadia. “Lá vai o Fausto para a sua Quinta das Bágeiras”, dizia o povo, sem saber que viria, um dia, a dar o nome a um dos mais promissores produtores de vinho portugueses, no top da região da Bairrada.

Até hoje sempre com o apoio — na vinha, na adega e na vida — do seu pai Abel e mãe Maria do Céu, Mário Sérgio tem agora também ao seu lado o filho Frederico Nuno, de 25 anos, licenciado em Enologia pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e com estágio em empresas de diferentes tamanhos e conceitos, como Lusovini, Susana Esteban, Sogrape, Anselmo Mendes ou Barão de Vilar. Também ele aprendeu muito com o pai e os avós enquanto cresceu, lições preciosas dadas diariamente no campo e na adega. Muito chegado à sua família e à sua terra, é no meio destas — e das galinhas, gansos e faisões que cria junto à adega — que Frederico se sente bem e prospera. Há vários anos que vai, todos os dias, tomar o pequeno-almoço a casa dos avós paternos, também ali ao lado e, sempre que pode, amassa o pão que a avó coze no forno de lenha, mostrando que há, de facto, uma geração que volta a ter amor pelas coisas da aldeia e da agricultura. E já não era sem tempo.

Quinta das Bágeiras
Mário Sérgio à direita com o pai Abel Nuno.

Um branco “como o avô fazia”

 Antes de 2001, Mario Sérgio apenas fazia um vinho branco em inox, que considerava bom, mas que não lhe dava pica. Ainda não tinha um branco que lhe enchesse verdadeiramente as medidas, ao seu gosto, mais complexo e ambicioso. Entre desabafos, Rui Moura Alves, à data enólogo consultor da Quinta das Bágeiras — e figura muito importante para esta casa, sobretudo no início — chegou com a resposta: “fazemos um branco como o teu avô fazia, no tonel, e deixamo-lo mais tempo nas borras, o necessário até o vinho se mostrar pronto e estabilizar por ele próprio”.

O Garrafeira branco é um lote de Bical e Maria Gomes, de várias vinhas velhas, algumas centenárias, em solo argilo-calcário. A maioria são parcelas de castas tintas plantadas em “field blend” (misturadas na vinha), como ditou o encepamento dos anos 60 e 70 na região, com as brancas pelo meio, a forma que se arranjou na altura para conferir mais álcool e estrutura aos vinhos tintos.

Faz decantação por precipitação natural durante um dia ou um dia e meio, sensivelmente. De seguida, fermenta e estagia precisamente num tonel antigo já com centenas de usos — sempre o mesmo, o número 21, com 2500 litros de capacidade — de Setembro até Julho ou Agosto do ano seguinte, conforme a prontidão que o vinho mostra. “Com uma mangueira, tiramos o vinho do tonel para uma selha, daí para o inox e deste para as garrafas [cerca de 3 mil], onde fica um ano antes de sair para o mercado”, explica Mário Sérgio Nuno. “Fica sempre uma pequena quantidade no fundo do tonel, cerca de 50 litros, que utilizamos na produção de vinagre ou para atestos. O vinho é feito da mesma maneira desde a primeira colheita, só varia o ano”, desenvolve.

Quando as duas primeiras colheitas foram lançadas, o Garrafeira branco não tinha grande aceitação no mercado, e Mário Sérgio chegou a pensar que só ele é que gostava do vinho… ao ponto de decidir não produzir a colheita de 2003, a única que falta nesta prova vertical, por esse motivo. “A Câmara de Provadores da Bairrada tinha, inclusive, chumbado o 2002, e só à terceira é que o passou”, confessa Mário Sérgio. Mas, depois do sucesso da prova do David Lopes Ramos e ao ver a reacção positiva do público, o produtor resolveu apostar nele, sem interrupções, desde a colheita de 2004 até hoje. Agora lança a de 2020, a 19ª edição. Assim, David acabou por ser, depois do incentivo inicial de Rui Moura Alves, o grande encorajador do Quinta das Bágeiras Garrafeira branco. “Devo a existência deste vinho ao David Lopes Ramos, por me encorajar a continuar a fazê-lo”, afirma. Mário Sérgio bem disse, bastantes anos mais tarde nos Prémios Grandes Escolhas de 2018, no discurso após ter recebido o Troféu Singularidade, que “o verdadeiro segredo deste negócio é a teimosia, eu sou muito teimoso naquilo que faço”. E o Garrafeira branco foi também muito isso.

A Bairrada e os seus brancos

Há várias condições edafoclimáticas na Bairrada que fazem dela uma excelente região para produzir grandes vinhos brancos, apesar de ser bem mais conhecida, e valorizada, pelos tintos de Baga. “A minha ideia da Bairrada é que é uma região que pode produzir excelentes brancos e, além disso, é mais fácil fazer todos os anos um grande branco do que um grande tinto. A influência marítima, a acidez das uvas sempre altíssima, os solos argilo-calcários… tudo isto é ideal para os brancos na região”, explica Mário Sérgio.

O clima da Bairrada é atlântico temperado, com Invernos frios e chuvosos e Verões moderadamente quentes, pois são suavizados pelos ventos vindos do mar e pelas grandes amplitudes térmicas, sendo muito frequentes as noites frescas. É uma região sem barreiras orográficas a Oeste, o que facilita a referida influência marítima.

“Quando eu comecei no vinho, havia uma coisa que se dizia muito, que era ‘bebe-se branco quando não há tinto’. Os brancos sofreram muito, ao longo dos anos, deste preconceito. É uma questão cultural, o país, de modo geral, ainda dá mais importância aos vinhos tintos. Uma das razões por que, logo nos encepamentos iniciais, se plantaram mais castas tintas do que brancas. Eu, por exemplo, tenho vinhos brancos mais caros do que os tintos”, elucida o fundador da Quinta das Bágeiras.

“Há um nicho de consumidores para os brancos ambiciosos, sobretudo nestas quantidades mais baixas, que deve ser aproveitado”, continua. Em boa verdade, a Bairrada é uma região de minifúndio, de parcelas dispersas, com uma dimensão média de vinha que chega apenas no meio hectare. “O Garrafeira branco 2021 só venderemos em 2023, mas idealmente até seria só lançado em 2025. É nos brancos de guarda, para lançar mais tarde, ambiciosos e complexos que a Bairrada deve apostar”. E conclui: “Não temos dimensão para grande volume, e fazer brancos ‘fresquinhos e do ano’, embora perfeitamente legítimos, não é o futuro da região…”.

Quinta das Bágeiras

No mercado:

Não foram encontrados produtos correspondentes à sua pesquisa.

Notas de Prova da Vertical:

18 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2019

Apenas num ano de colheita de diferença, ganhou nuances de orvalho matinal, sílex, leve raspa de toranja e toque de pólvora. Muito envolvente, sem nunca perder o nervo inicial, está ainda super novo e pujante. O grau nem se acusa, dada a elevada frescura natural. (15,5%)

18 C

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2018

Aqui, além da cremosidade e do querosene e pólvora expectáveis, tem já especiarias, como pimenta branca e açafrão, uma componente vegetal e sugestão de casca de laranja. Na boca mantém a acidez no topo e sobretudo uma enorme secura final, característica de quase todos os Bágeiras Garrafeira branco. (14%)

 17,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2017

Floral, grafite, limão maduro, ligeiramente menos preciso e mais difuso nos aromas. Na boca, apesar de não dar o estalo de acidez que os outros dão, tem enorme frescura e cremosidade, delicadeza num conjunto muito bonito. (14,5%)

 17,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2016

Bem delicado no aroma floral q.b., infusões tipo camomila e erva-príncipe, toranja madura. Na boca volta ao registo de óptima frescura ácida e precisão, nervo e juventude. Fica na boca e termina salino. (14%)

 17,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2015

Muito expressivo e a atacar na pedra raspada e no querosene, bastante pólvora e sugestão calcária, pimenta branca. Na boca traz uma percepção de acidez um pouco mais baixa do que os outros, mas é elegante e delicado. (14%)

 17 A

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2014

Floral e com fundo vegetal no nariz contido, com levíssima sugestão de pvc que lhe dá piada. Mais directo na boca e com menos corpo do que os anteriores, e ligeiramente mais diluído no conjunto. Provavelmente resultado das adversidades do ano 2014, que foi bastante chuvoso no momento em que não devia. (13,5%)

 17,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2013

Este vai na direcção do exotismo, com bastante especiaria, casca de laranja, lima e sugestão de cardamomo. Na boca está bem vivo e harmonioso. (13,5%)

 19 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2012

Pólvora, pederneira, muita flor e fruta, como nêspera e alperce, pimenta branca e leve caril de fundo, num nariz sublime. A untuosidade é impressionante, num conjunto de pendor vegetal, precisão superlativa e persistência quase infinita. O melhor da “nova geração” do Garrafeira branco. (14%)

 18,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2011

Aqui parece que o vinho chegou à maturidade, qual adulto consciente e sereno na vida. Consolidado, bastante complexo e profundo no aroma, sério, com tudo no sítio. Na boca tem grande volume, estrutura fenomenal, tudo em harmonia, super longo, com imenso carácter e presença. Prima pelo perfil de tensão, secura e untuosidade óptimas. (14%)

 18,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2010

Bastante flor do campo, ervas aromáticas, limão e pedra molhada no nariz muito bonito. Na boca é impactante porque parece um dos novos, com acidez no topo, imenso nervo e estrutura, sempre com cremosidade presente mas q.b. Impressionante também pelo equilíbrio e harmonia, sabor, secura e suculência. (13,5%)

 18,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2009

Enorme complexidade de nariz, envolvência e mistério. Na boca explode em corpo e estrutura, altamente sumarento na fruta cítrica e branca, tenso, consolidado, com muita classe. Espectacular. (14,5%)

18,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2008

Querosene, grafite, pedra molhada, fruta de caroço madura, pimenta branca e folha de louro, no nariz complexo, para não variar. Com elevadíssima secura e elegância, e também nervo, é nele óbvia a longevidade em garrafa. (13,5%)

 19,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2007

Enormíssima complexidade no aroma expressivo de sílex, pedra molhada, pimenta branca, grafite, pederneira… Na boca é todo impressionante pela gigante frescura, equilíbrio em todos os pontos, vivacidade, firmeza, enorme amplitude, crocância e prolongamento. A suavidade é de luxo e o vinho poderoso em simultâneo, um branco que não acaba, de classe mundial. (14%)

18,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2006

Muito mineral nas notas de sílex e querosene, flores brancas e sugestão de zest. Óptima cremosidade e estrutura ácida, super amplo e largo no palato, salino no final longo e nervoso. (14%)

 18,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2005

Nariz com imenso querosene, pólvora, sugestão aborrachada no fundo, também casca de tangerina. Altamente equilibrado, com acidez cítrica gigante, mostrando o perfil mais cítrico de todos. Enorme te(n)são. (14%)

 19,5 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2004

Chegamos mais uma vez ao topo dos Garrafeira branco. Este apresenta fruta cítrica cristalizada, pederneira, flores do campo, infusão de camomila, no nariz complexo e profundo. Na boca tem tensão enorme, é intenso nos sabores e tem salinidade no ponto, a deixar as glândulas salivares a pulsar de prazer. Espectacular, quase coage ao próximo copo, envolvente e muito, muito puro no conjunto. Não queremos sair dele, é monumental. (13%)

 19 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2002

Aqui as flores do campo juntam-se ao mel fumado e à madeira antiga, também amêndoa torrada. Enorme classe e mineralidade, fumo finíssimo no nariz e na boca, imenso sabor e suculência, super largo, fica para sempre na boca, acidez enorme e equilibradíssima com a untuosidade sedutora. Grande branco. (13,5%)

 20 B

Quinta das Bágeiras Garrafeira branco 2001

Acabamos em grande, parece de propósito, mas não é. Extremamente sério e complexo no nariz mineral, sensual, sem exuberâncias histriónicas, mas com um certo “quê” que adivinha grandiosidade. Na boca envolve-nos numa dança de precisão, finesse e classe, fantástica personalidade e carácter, presença imponente, ainda muito vivo e para durar. Não se podem escrever as coisas que apetece fazer com este vinho. Estrondoso e a mostrar, pela sua juventude, que o Garrafeira branco é quase eterno. (13,5%)

(Artigo publicado na edição de Julho 2022)

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