É uma história antiga que envolve bicicletas, enxadas e muita
arte. De cavar mas também de beber. Algures no Portugal
profundo, quando ainda se via o céu estrelado e onde apenas
os latidos dos cães perturbavam o silêncio absoluto.
O Armindo era meu amigo. Morava perto de mim, tinha mais ou menos a minha idade, brincávamos juntos durante o Verão. Havia um mundo enorme que nos separava: ele vivia todo o ano no campo, eu apenas lá ia durante as férias; eu vivia numa cidade onde havia electricidade e transportes públicos, ele vivia numa aldeia sem luz, sem água canalizada, sem estradas alcatroadas.
Tinha sobre mim uma enorme vantagem: sempre que havia a lua nova, Armindo podia desfrutar da imensidão estrelada do universo, uma vez que no raio de muitos quilómetros não havia lugarejo com luz eléctrica; já eu, com sorte, só podia ficar a gozar esse espectáculo alguns dias por ano, nos dois meses de férias que passava no campo. Apesar desse enorme abismo, ele era um artista com a fisga, com o pião e não levava desaforo para casa; o que fosse para resolver era na rua, ao soco e pontapé. Nada disso impedia que jogássemos à bola, fossemos colocar armadilhas para apanhar os pássaros e fumássemos barbas de milho em cachimbos de cana feitos por nós.
O pai, trabalhador rural, também era um artista, com a enxada e com o garrafão de vinho. Sem máquinas de que tipo fosse para ajudar no trabalho da terra, era à custa de enxada que se preparavam os terrenos nas hortas, trabalho esse sempre acompanhado de um garrafão de três litros. De manhã, quando ia a casa do empregador buscar as alfaias, o pai do Armindo recebia o garrafão que o acompanhava durante o dia. É verdade que o garrafão ia “baptizado” com alguma água, tornando o vinho menos alcoólico e permitindo que o trabalho agrícola fosse feito apesar dos três litros. Era no regresso que a coisa se complicava. Ao chegar a casa para entregar as alfaias e o garrafão vazio, o pai do Armindo era ainda presenteado com uns três copos de vinho (presumivelmente igual ao que tinha consumido durante o dia) e fechavam-se as contas.
Não havia metro de estrada onde o pai do Armindo não tivesse ainda aterrado, esfregando a cara na terra
A seguir montava-se na sua bicicleta e ia à sede da freguesia, onde havia uma tasca “à séria”, ou seja, com vinho de barril não baptizado, logo, bem alcoólico. Era ali que o caldo se começava a entornar. Depois de “varrer” um número não contabilizado de copos de 3, lá vinha ele direito a casa. Por sorte, o caminho desde a tasca até sua casa, cerca de 1 km, era sempre a descer e por isso o esforço era mínimo. Já para se aguentar em cima do veículo numa estrada poeirenta e cheia de buracos, era um sarilho. Por isso se comentava no lugar, e com alguma razão, que não havia metro de estrada onde o pai do Armindo não tivesse ainda aterrado, esfregando a cara na terra. Lá se levantava, aos tombos e conseguia chegar a casa. O Armindo, coitado, por vezes ainda apanhava sem saber porquê, tudo consequência da bebedeira diária do pai.
Este cenário, muito vulgar no país rural que fomos durante séculos e que, ao que nos contam, ainda se presencia no Douro profundo, tinha imensos protagonistas: o pai do Armindo não era artista a solo, no lugar onde morava contavam-se histórias de outros trabalhadores que, alcoólicos como ele, acabaram os seus dias com cirroses, provavelmente a razão de morte mais habitual naquelas paragens. Por aqui vinho de qualidade era um conceito desconhecido, o melhor vinho era o do copo cheio e, a haver, a qualidade media-se pelo grau: quanto mais alcoólico melhor.
Quando, no caminho, nos cruzávamos com o pai do Armindo, tínhamos de saltar para a berma porque não sabíamos se era aquele “o metro” de estrada que tencionava abordar naquele dia. Ele, com ar lívido e fixo, nem dava pelos transeuntes, tal o nível de alcoolémia. Tinha mais sorte nos dias de lua cheia porque o caminho ficava um pouco mais iluminado. No dia seguinte voltava a ir trabalhar e a mostrar que, com vinho baptizado, era um artista a trabalhar a terra. Dava gosto ver, ao final do dia, como a horta estava preparada para receber as sementes. Uma pintura. E, muitas vezes nas nossas incursões matinais para pormos as armadilhas dos galegos, flosas, pintassilgos e outros passarinhos, ao passar numa horta, se notávamos a perfeição do trabalho feito logo víamos que tinha sido o pai do Armindo.
Castas? Leveduras? Malolácticas? Qual quê, naquele tempo o vinho bebia-se e pronto. Muito, demasiado, sem critério nem conversa. O mundo acabava ali e para se saber o que se passava noutras paragens tinha de se usar um rádio de pilhas, a única modernice autorizada, já que, até para saber a que horas se acabava o trabalho, era o sino da igreja que ao longe indicava o tempo. E à noite, à espera que viesse o sono, íamos para a varanda ver as estrelas. A essa hora o pai do Armindo ressonava (a casa era perto e ouvia-se) e, além dos latidos de alguns cães ao longe, o sono do artista era o único som que se ouvia. Férias de Verão, estórias do vinho de antanho.