O papel social do pastel de bacalhau é mais pertinente do que se possa pensar. Nos tempos modernos, não há quem não tenha sido salvo por um, ou da fome, ou do tédio.
Texto: Mariana Lopes
O incomparável José Quitério, pai da crónica gastronómica em Portugal, conta-nos no seu “Livro de Bem Comer”, de 1987, que a primeira menção ao dito é feita com a expressão plasmada no título deste texto. O bacalhau, que nem sempre foi peixe fidalgo, fez ele próprio a sua ascensão social, desde o momento em que começou a ser pescado pelos portugueses na Terra Nova, no século XVI. Peixe popular por defeito, chegou às mesas abastadas lá para os finais do século XVIII, conseguindo superar a aura negativa que o médico de D. João V, Francisco da Fonseca Henriques (1665-1731), tinha sobre ele lançado, numa afirmação que tanto José Quitério como eu vemos com grande potencial humorístico: “O bacalhao, que he uma especie de pescada, mais duro, e de peior alimento que ella, coze-se dificultosamente, gera humores melancólicos, e mal depurados das suas partes excrementícias. He o alimento dos pobres e dos rusticos; e proprio pera pessoas que trabalhão, e se exercitão muito. Não se deve usar em pessoas delicadas, nem nas que passão vida sedentária”. Ora, não sei que tipo de condimentos é que o doutor Francisco punha no seu bacalhau, mas desconfio que a melancolia que lhe dava não tinha nada que ver com o peixe. Se esta depressão era, por sua vez, problema de D. João V, então podemos imaginar uma consulta com estes dois, lá para 1710: “Doutor Francisco, tenho-me sentido tétrico, abúlico e meditabundo depois do almoço…”, “Isso é do bacalhau, Sua Majestade.”, “Pois, a Maria Ana comprou uma Bimby que veio com um livro de receitas de bacalhau e agora só faz disso.”, “Faz sentido, a culpa é sempre das mulheres”. Nem de propósito, consta na Wikipedia, sobre a saúde e morte do rei, que “Em 1711 convalesceu de uma queixa de flatos. Em 1716 foi restabelecer-se em Vila Viçosa de doença de cariz melancólico”. Só não diz lá nada sobre bacalhau.
Bem, voltando ao tema principal, o pastel de bacalhau é nomeado pela primeira vez em 1841, mas só em 1904 apareceu escrita a sua primeira e consensual receita, no Tratado de Cozinha e de Copa, de Carlos Bento da Maia, ou, como aparece na capa do folheto publicitário de divulgação prévia, O Livro das Donas de Casa – A Mais Útil das Publicações. Cá para mim, não é coincidência que o Benfica e o Tratado tenham surgido no mesmo ano, deve ser lá que vem a fórmula da sandes de courato, apesar de eu ser benfiquista e mesmo assim preferir o bolinho de bacalhau. Como Quitério teve o cuidado de transcrever, “Toma-se bacalhau cozido, limpa-se de peles e de espinhas, mistura-se com batatas cozidas e bastante salsa cortada em pedaços, e passa-se tudo pela máquina de picar. O polme resultante liga-se com leite e gemas de ovos e tempera-se com um pouco de sal fino e pimenta em pó. Bate-se a massa, à qual se juntam as claras de ovos, previamente batidas em castelo, liga-se tudo rapidamente, tira-se a massa às colheradas, fazendo-se passar de uma colher para a outra e, seguida e sucessivamente, põem-se a frigir. O azeite deve ser abundante, para que os bolos mergulhem nele sem tocar no fundo. Tiram-se do azeite com uma colher crivada e põem-se a escorrer”.
Apesar da decadência actual da qualidade da iguaria, como já indicava José Quitério em 1987, a verdade é que o pastel de bacalhau é uma coisa muito portuguesa e que nos acompanha durante a vida toda. Lembro-me de, quando era criança, os levar para as visitas de estudo. De me deliciar com eles na praia e nas viagens de férias. Não há casamento que não os tenha, nem catering que não os faça. E nos eventos de maior dimensão, profissionais ou sociais, aqueles marcados para as 19h30 em que nos sentamos à mesa às 22h00, não há quem não tenha sido salvo por um (ou por vários…). E por isso faço minhas as palavras do grande Quitério: “(…) Salvemos o pastel de bacalhau! Mais importante do que o lince da serra da Malcata, criação genial da inventiva popular, ex-líbris do nosso património gustativo. Disse. Se necessário, repito”.