Editorial da revista nº45, Janeiro 2021
Há poucas variedades de uva com um carácter tão distintivo quanto a Baga. Difícil na vinha, irreverente na adega, é base de vinhos tão marcantes e inconfundíveis quanto difíceis e polarizadores, sempre de acidez elevada, frequentemente de taninos vigorosos. Não buscando unanimidades, a Baga oferece, cada vez mais, qualidade, identidade, notoriedade e valor, a produtores e apreciadores que procuram tudo isso.
Luís Lopes
A casta Baga e os vinhos que origina (sobretudo) na Bairrada está longe de ser consensual. E não é difícil perceber porquê. A forte personalidade dos seus tintos afasta-a completamente da grande maioria dos consumidores que, muito naturalmente, prefere vinhos com fruta madura e doce e sabor suave e polido. Mas esse mesmo vincado carácter atrai uma legião de fãs, dentro e fora de portas, que ali encontra aromas e sabores que saem fora do “mainstream”, independentemente do estilo adoptado por cada produtor.
Visitei a Bairrada pela primeira vez, na pele de director de uma revista de vinhos, em 1989. Numa época em que pouquíssimos consumidores sabiam o que era uma casta de uva, foi nessa visita que percebi verdadeiramente a Baga. Acostumado a vinhos com alguma idade e de perfil austero e clássico (em 1984, aos 23 anos, o meu primeiro salário de jornalista foi comemorado com uma garrafa de Pasmados!) os tintos da Bairrada foram para mim uma revelação. E nomes como Casa de Saima, Luis Pato, Quinta da Dôna, Quinta de Baixo, Sidónio de Sousa e Quinta das Bágeiras saltaram para o topo das minhas preferências vínicas. Essa paixão pelos Baga da Bairrada solidificou-se com o tempo e com o conhecimento. E ampliou-se mesmo, nos últimos cinco ou seis anos, devido a dois motivos: o aparecimento de novos produtores apostados traduzir a plasticidade da uva em diferentes interpretações, sem perder a identidade que a caracteriza; e a “explosão” dos espumantes Baga-Bairrada que vieram dar outra dimensão e popularidade à casta e, ao mesmo tempo, resolver o problema da Baga inadequada (que existe!) para vinho tinto.
O trajecto da Baga na Bairrada não tem sido fácil. Se nos anos 90 era inquestionável, nos anos 2000 passou a ser demonizada, culpada de todos os males, acusada de estar desenquadrada das tendências de mercado e ocasionar o descalabro nas vendas dos tintos da região. Pessoas desesperadas tomam, compreensivelmente, medidas desesperadas. De um momento para o outro, a Bairrada tornou-se na Denominação de Origem portuguesa mais permissiva em termos de castas, ao ponto de hoje um Bairrada tinto poder ser feito de, entre outras, Syrah, Cabernet Sauvignon, Merlot, Petit Verdot ou Pinot Noir. E, no entanto, os grandes tintos de Baga, elaborados a partir de vinhas plantadas no local certo e com produção controlada através de monda, mantiveram o seu percurso, continuaram a ganhar notoriedade e valor. Quase duas décadas passadas de uma “liberalização” que regiões como Dão ou Douro, por exemplo, nunca aceitariam, os vinhos mais reputados e valorizados da Bairrada são, hoje e cada vez mais, baseados em Baga. Para chegarmos aqui, no entanto, convém não esquecer aqueles que, rejeitando o canto da sereia dos Merlot e afins, se mantiveram irredutíveis no seu caminho, até o tempo (e o mercado) acabar por lhes dar razão. Luis Pato e Mário Sérgio Nuno, sobretudo eles, são, sem sombra de dúvida, os grandes guardiões da Baga, conseguindo através do seu exemplo de sucesso mudar práticas e mentalidades. Sem eles, a Bairrada seria outra coisa. A entrevista que publicamos nesta edição e que, pela pela primeira vez, fazem em conjunto, é bem ilustrativa do seu percurso, do que os separa, do que os une.
Na Bairrada, a Baga nunca poderá fazer vinhos baratos e de volume. Mas pode assumir-se, enquanto casta identitária, como determinante para a valorização e notoriedade dos vinhos da região. Num mercado que busca, cada vez mais, a diferença com qualidade, a Baga pode ser, ao mesmo tempo, paixão e razão.