Colares contra Collares: A Lisboa do desassossego

Nem de propósito encaixo-me nas ondas que os tempos trazem. Ainda há pouco protestava que, fazendo uma prova de Lisboa, onde tanto acontece, me limitei a encarar tintos topos de gama que seguem cânones que já não são tanto destes tempos, salvas as devidamente assinaladas excepções e sem deixar de aceitar a grande qualidade dos vinhos provados. Também há pouco tempo me lamentava, em tom sentimental, de como a minha terra tinha levado com o selo “Lisboa”, sendo eu da Leiria tão distante.

Pois agora a providência juntou-se com os actores certificados e não certificados e foi-me entregue um desafio: perceber o puzzle espacial, temporal, ampelográfico e estilístico (chega para começar?) de Colares. Já explico de que forma isto agrava todos os meus problemas anteriores, mas também adianto já a conclusão: enquanto houver ventos e mar, a gente não vai parar. Muito menos a gente de Colares. Ou será Collares?

Uma pequena região de velhas tradições

Começamos já com tempo e espaço. Colares é uma pequena região muito próxima de Lisboa, onde as velhas tradições impuseram regras rígidas na especificação dos vinhos. Incluída na segunda leva de criação de denominações de origem, em 1908, tinha já pergaminhos que remontavam ao século XIII, e gentes com convicções fortes sobre as regras. DOC Colares só de Malvasia ou Ramisco, com videiras plantadas em pé-franco (sem porta-enxerto americano) em terra de areia, numa área circunscrita a partes bem demarcadas de três freguesias: Colares, São João das Lampas e São Martinho. Há alguma discussão sobre a Malvasia, que é na verdade uma família de castas. Diz, quem sabe, que a Malvasia de Colares é uma casta diferente da Malvasia Fina, a Bual/Boal da Madeira. Aliás, diga-se que também na Madeira as discussões sobre as várias Malvasias são acesas e incluem a rara Malvasia Cândida e a hoje predominante  Malvasia de São Jorge. Onde há diversidade há origens antigas.

A terra de areia + pé-franco tem origem na praga da filoxera, já que só em algumas condições a filoxera (americana) não destrói a velha Vitis vinífera (europeia), obrigando ao porta-enxerto de Vitis rupestris (americano). Uma dessas condições é a terra de areia, e temos Collares. Com dois Ls porque é antigo.

Estas histórias foram já todas contadas, mas há muitas, muitas mais. A Adega Regional de Colares (ARC) é uma cooperativa (1931) que agrupa vários papéis, que já incluíram o de certificador (hoje é a CVR Lisboa). Em 1941, a escassez de uvas levou à criação de uma lei que obrigava todos os produtores a entregar as uvas na ARC, que fazia o vinho para mais tarde ratear pelos seus associados. Esta obrigação durou muito mais do que a escassez de uvas, até cerca de 1994. O carácter híbrido da instituição impediu-a de se candidatar a subsídios europeus. E não se modernizou, nem pôde apoiar a modernização das vinhas da região. Hoje a ACR não tem vinhas, mas aceita uvas dos seus associados que as têm, elabora os vinhos (pela mão de Francisco Figueiredo e sua equipa), estagia-os e vende-os a produtores da região, com os quais está historicamente comprometida. Isto faz com que muitas empresas vendam na verdade o mesmo vinho, com ligeiras variações de lote e estágio. Por outro lado, a ACR faz hoje marcas próprias, incluindo os DOC Arenae, para além de outros vinhos de Chão Rijo, que aliás é sua marca registada.

Um puzzle complexo e fascinante

Em várias visitas de reportagem, e com o apoio do próprio Francisco Figueiredo e do dinâmico Diogo Baeta, da Viúva Gomes, procurei decifrar este puzzle até um ponto que vo-lo consiga explicar. Aqui importa explicar melhor o contexto. São 1000 anos de história, mas vou focar nos mais recentes.

Praticamente todos os actores de Colares são pessoas ali nascidas e criadas, que vivem profundamente um grande amor pelo seu sítio e têm um grande orgulho pela sua tradição. Se têm opiniões diferentes sobre o rumo a tomar, isso não se deve a falta desta devoção.

Ainda não falei das terras que não são de areia, o Chão Rijo, que engloba nessa definição todos os solos que não são de areia. Mas rijos ou moles, ambos têm muita variação, um incrível degradé de composições que explica a especificidade do terroir, se lhe juntarmos a proximidade ao mar (há vinhas literalmente a 40 m do Atlântico) e a exposição aos terríveis ventos salgados que tudo queimam e obrigam a carinhos e desvelos, incluindo técnicas e instrumentos próprios para evitar as humidades do solo e aproveitar os raios do sol que se podem tornar raros. Os muros e paliçadas são icónicas destas vinhas, que se fazem muito rasteiras, e ainda têm de disputar os terrenos com as muito apreciadas maçãs reinetas locais, que todos os anos têm o seu próprio festival. Terra de areia (ou seja, DO Colares) é um total de 24ha, na posse de 12 produtores de vinho e uns 20 viticultores (não necessariamente os mesmos).

Para explicar o imbróglio é preciso dizer que o amor dos locais pelo seu chão e o seu vinho não os impede de repetir, pelo contrário, paradoxalmente até o dizem com um certo orgulho, que em Lisboa se dizia amiúde: “este vinho ou está azedo ou é de Colares.” O Ramisco é uma casta feroz de taninos. A maturação não era assegurada, a enologia seria possivelmente optimista, e eu, na minha vida de provador de vinhos, habituei-me a tintos de Colares rústicos, herbáceos, magros, por vezes sujos, exigindo muitas dezenas de anos para amaciar, ou então não amaciando de todo. Mas por vezes uma réstia de esperança lá saía de dentro de uma garrafa e eu percebia algum do velho e prometido encanto.

Entram a enologia e viticultura modernas, o poder do povo, o vinho para o povo, e todos nos habituámos a vinhos mais encorpados, concentrados, macios, bebíveis mais cedo. Colares foi ficando para trás. Veja-se o que aconteceu na Bairrada, onde os Merlot e Syrah iam afastando a Baga, tal como a má moeda afasta a boa moeda. Veja-se como a Bairrada tradicional resistiu, sobreviveu e se impôs pelo carácter dos seus vinhos que respeitam o terroir local e a gastronomia. Pois o mesmo aconteceu em Colares. Começou de mansinho, com o vinho branco, a Malvasia impondo uma mudança súbita de métrica, onde a secura salina oferecia qualidades sedutoras, e depois o Ramisco, afinado aos tempos modernos, a oferecer salinidade e autenticidade com moderação da rusticidade. Em suma, num mundo mais global e globalizado, estes vinhos começaram a oferecer diferença, e a sua raridade impôs preços altos e o regresso aos radares do mercado.

Areia ou nada?

Se tudo isto é novo para o meu caro leitor, também o é para mim, só posso recomendar que volte a acreditar e vá provar os vinhos. Vai valer a pena.

O problema é que a região tem apenas 24 ha de terra de areia, e tudo o que não é terra de areia tem de cair no imenso tegão dos “Regionais Lisboa” (Como o vinho da minha terra Cortes, lembram-se? Só que as Cortes não têm o mesmo peso histórico). Os fervorosos produtores defensores de Colares querem, ao mesmo tempo, defender o seu velho cânone (chamemos-lhe, por argumento, Collares), um dos mais específicos e rigorosos de que há registo. Mas os mesmos produtores não conseguem viver das poucas garrafas que produzem (alguns fazem 200, outros 400). E para os vinhos oriundos do outro chão (que “chão rijo” é marca registada), não podem nem escrever a palavra Colares no rótulo, nem como endereço postal da sua adega. Collares vs. Colares, uma espécie de Kramer contra Krammer (cf. Google).

As uvas para DO Colares chegam a ser vendidas a €5 o quilo, e há sempre falta. Não ouvi ninguém a defender que Colares deixasse de exigir areia e pé-franco. Mas ouvi produtores protestando que há empresas e marcas que só querem ter um Colares no seu portefólio para aumentar o interesse nos seus outros vinhos, que depois vão comprar já feitos muito longe das encostas salgadas da Praia das Maçãs, Adraga ou Azenhas do Mar.

Quem acredita em Collares faz vinhos de extraordinário carácter, cada vez melhores e com uma identidade própria do lugar, um incrível terroir cuja dimensão impõe raridade e preços altos. São, sempre, vinhos para a mesa. À volta de Colares fervem projectos, com mais ou menos identidade, mas que são essenciais para manter vivas e sustentáveis as adegas. Se têm falta de um nome que os una, têm pelo menos uma vantagem. Estão próximos uns dos outros e conseguem sentar-se à volta de uma mesa. Apareça a identidade, que o nome aparecerá, porque este incrível amor pelo seu sítio vai dar frutos, e nós agradecemos esta teimosia milenar.

Quem é Quem em Colares 

A Adega Regional de Colares tem 13 associados com 14ha de vinhas em chão de areia, ou seja, mais de metade da área disponível para DOC. Elabora o vinho destes associados e vende-o a alguns deles e alguns negociantes que pagam um royalty. Ou seja, há produtores com vinha e viticultores sem adega.

Viúva Gomes é um produtor já muito antigo, que passou por diversas e históricas mãos até que em 1988 foi comprado pela família Baeta. Hoje é liderado por José Baeta, pai de Diogo, que nasceu nesse mesmo ano. Diogo estudou enologia e insuflou uma nova tendência à Viúva Gomes, que pouco a pouco deixou de ser apenas “négociant” e passou a “vigneron.” O trabalho de Diogo na adega e principalmente na vinha leva a Viúva Gomes a ser um dos principais motores da renovação da região de Colares, em estreita colaboração com a ACR e em sintonia com valores locais e respeito pelo terroir e seu futuro.

António Bernardino Paulo da Silva, por vezes referido pelo nome da sua marca, Chitas, é um histórico da região. Sediado nas Azenhas do Mar, mesmo de frente para o oceano bravio, aos 96 anos ainda gere a sua companhia, com marcas históricas como o Colares Chitas ou o Beira-Mar. Não tem vinhas, compra o vinho na ARC (da qual a sua casa é sócia fundadora), e estagia-o, loteia-o e engarrafa-o na sua adega.

Daniel Afonso produz há vários anos o Baías e Enseadas. Apaixonado e rigoroso, tem fascínio pela prova e é a prova que o leva a respeitar o terroir e explorá-lo da forma menos interventiva possível, mas sempre seguindo as suas convicções.

O Casal de Santa Maria ficou famoso no mundo do vinho quando o Barão Bodo von Bruemmer plantou uma vinha, em 2006, já com a bonita idade de 96 anos. Ainda viveu muitos anos para ver o sonho de fazer o seu vinho em Almoçageme, no coração da DO Colares. Plantou castas internacionais, mas a propriedade também faz vinhos DOC de grande qualidade. Hoje liderada pelo neto, Nicholas von Bruemmer, tem enologia de António Figueiredo e Jorge Rosa Santos, que continuam a tradição dos vinhos da magnífica quinta.

João Corvo e a sua filha Ana Bárbara são os orgulhosos cuidadores das vinhas do Mare et Corvus, as vinhas mais ocidentais do continente europeus, a escassos 40m da falésia sobre a icónica – e cónica – pedra Vitoreira, uma visão deslumbrante que se eleva do mar selvagem. Os Corvos têm Ramisco e Malvasia, mas também Fernão Pires e Chardonnay, que não dão DOC, em vinhas belíssimas, cujas uvas são vinificadas à parte na ACR.

Alexandre Guedes é o responsável pela Vinhas e Vinhos, que produz os vinhos da Quinta de San Michel, com vinhas em Janas, freguesia de São Martinho. Com vinhas de Malvasia e Arinto plantadas em chão rijo, tem também Ramisco (meio hectare) e Malvasia (2ha) em terra de areia. Manuel Francisco Ramilo & filhos é um produtor familiar com vinhas no vale do rio Lizandro, incluindo a Quinta do Cameijo e a Quinta do Casal do Ramilo. Pedro e Nuno Ramilo foram desafiados pelo pai a retomar a tradição familiar de fazer vinhos e decidiram fazê-los à sua maneira, procurando inovar a tradição do chão de areia, fazendo rosés, espumantes (ambos não admitidos na DO Colares).

Haja Cortezia vinhos é explorado pelo casal Luís Duarte e Teresa Gamboa Soares. Luís é filho de António Maria Perpétuo Duarte, o proprietário das vinhas, que ficam em São João das Lampas. São 5ha, entre vinhas velhas e vinhas novas, situadas perto das praias da Samarra e São Julião. Cada parcela faz um único vinho. Os vinhos Infinitude de Osório & Gonçalves, têm João Lino na enologia, e exploram castas internacionais no chão rijo, enquanto mantêm os cânones DOC na areia. O seu Ramisco é o mesmo da ACR, com mais 6 meses de estágio. Esta tradição de vinificar em conjunto é usual na região, devido às pequeníssimas produções das parcelas.

Colares

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2025)

SIGA-NOS NO INSTAGRAM
SIGA-NOS NO FACEBOOK
SIGA-NOS NO LINKEDIN
APP GRANDES ESCOLHAS
SUBSCREVA A NOSSA NEWSLETTER
Fique a par de todas as novidades sobre vinhos, eventos, promoções e muito mais.