É neste nosso querido mês de novembro que as talhas são abertas um pouco por todo o Alentejo. Sucede que a talha já virou moda, e encontramos brancos e tintos, fermentados e/ou estagiados em barro, um pouco por todo o país e com vários feitios. Venha conhecê-los!
TEXTO Nuno de Oliveira Garcia
FOTOS Ricardo Palma Veiga
Não há dúvidas que a talha está na moda. Até o consumidor menos atento já se deparou com vinhos que orgulhosamente exibem no rótulo um depósito de barro e indicam ter fermentado ou estagiado neste tipo de depósito. A verdade é que a talha é uma preciosidade histórica, uma vez que existe, enquanto depósito de vinho, desde a época romana, ou seja, há sensivelmente mais de dois mil anos.
Como o leitor já poderá saber, uma talha é um pote de barro com grandes dimensões, com maior ou menor porosidade de acordo com o tipo de argila de que é feito, e com a finalidade de permitir a fermentação de mostos e eventual posterior armazenagem durante um curto período. A talha apresenta-se com tamanhos e feitios diferentes, quase sempre dependendo da localidade onde era produzida, mas raramente ultrapassa os dois metros de altura e uma tonelada de peso.
Apesar de já não se encontrarem adegas em funcionamento com centenas de talhas, como acontecia ainda no século XIX, a verdade é que no Alentejo sempre se manteve a tradição de fazer vinho em talha. A crescente procura por talhas – agora sobretudo para vinificação, mas até há bem pouco tempo para efeitos apenas de decoração… – fez aumentar o valor destes depósitos, em especial as verdadeiramente antigas (já nos confrontarmos com algumas datadas do século XVIII, sendo, todavia, mais comum encontrar talhas da primeira metade do século XIX).
Em termos de vinificação e enologia, existem três características essenciais da vinificação em talha que condicionam o produto final. A primeira é o tamanho e forma da talha, que influi diretamente na vinificação do vinho, quer ao nível da mecânica, quer ao nível da temperatura. Em segundo lugar, dentro de uma talha ocorre uma forte concentração do vinho, sobretudo pela oxidação via porosa (e, por vezes, pela ausência de tampa em casos mais extremos), de tal forma que são elevadas as perdas de vinho devido a evaporação. A terceira característica principal é a utilização de pez, muito comum no Alentejo, apesar de, como veremos abaixo, existirem atualmente produtores a evitar utilizá-la.
Efetivamente, o modo clássico de fazer a impermeabilização da talha ocorria pela rebocagem do interior da talha com resina de pinheiro – denominada pez louro –, à qual se poderia adicionar, conforme a receita do pesgador e a preferência do produtor, alguns outros produtos naturais, como cera de abelha, por exemplo. Evidentemente que a pez transmite ao vinho aromas e sabores particulares, e são esses aromas que alguns produtores procuram manter e outros evitar. À semelhança das barricas novas, quantas mais colheitas passarem por uma talha pesgada (sem que seja novamente pesgada) menos o vinho final é influenciado pela pez. Tradicionalmente também, a fermentação ocorre com as massas vínicas, sendo estas mexidas com um rodo de madeira de ponta oval várias vezes por dia, incluindo durante a noite, a fim de procurar evitar que as massas à superfície obstruam a boca da talha e originem o seu rebentamento (o que era comum, diga-se).
Tradição viva
Apesar de a produção de vinhos em talha se ter mantido no Alentejo, a verdade é que eram poucas as marcas e os enólogos que apostavam neste nicho. A par da Vitifrades – Associação de Desenvolvimento Local fundada em 1998 em Vila de Frades (concelho de Vidigueira) com a intenção de promover, precisamente, o vinho de talha – e mais um ou outro produtor – como a casa Amareleza e a José de Sousa – pouco mais existia até há alguns anos. A produção era quase toda artesanal, muitas vezes feita em casa, e era consumida nas adegas e tabernas.
Mas tudo isso mudou, e hoje em dia são poucos os profissionais de enologia que não têm curiosidade em produzir vinhos utilizando este método ancestral. Por isso, alguns projetos pessoais de reputados enólogos encontram-se presentes nesta nossa seleção, caso dos vinhos de António Maçanita (Fita Preta), um dos primeiros a apostar no regresso da talha, e, mais recentemente, de Filipa Pato (Post-Quer..s). No que respeita a Maçanita, e como é seu apanágio, o vinho por si produzido tem tanto de original como de inovador – por um lado, utiliza a talha para fermentar as uvas, por outro lado, fá-lo sem recurso às massas e com controlo de temperatura. Igualmente prova do carácter inventivo que a talha também proporciona é o facto de o tinto produzido por outra enóloga conceituada, Susana Esteban (Sidecar), assentar num lote que junta castas tradicionais da serra de São Mamede com, imagine-se, Baga da Bairrada…
Outros enólogos ainda, como Hamilton Reis e Bernardo Cabral, confirmaram-nos também que há muito tempo que sentiam a vontade de produzir um vinho com utilização de barro e que acabaram mesmo por incentivar os respetivos produtores onde colaboram (Cortes de Cima e Companhia das Lezírias, respetivamente) a seguir essa via. Ambos optaram pela utilização de ânforas de barro puro e de menor dimensão, e apenas para efeito de estágio, privilegiando a natural evaporação e concentração do vinho, mas sem os aromas a pez.
Se com as primeiras colheitas de novos produtores poderíamos entender que se tratava essencialmente de experiências, atualmente – isto é, com vários vinhos já lançados no mercado – não temos dúvidas de que a experimentação conduziu à criação de novos produtos, por ora ainda de nicho, mas em franca expansão também ao nível da exportação. A tendência mundial centrada na procura de vinhos tidos por mais naturais é muito favorável à expansão do vinho de talha. Vinhos como Art.Terra Amphora (Herdade de São Miguel/Casa Relvas) e Herdade do Rocim Amphora são sucessos além-fronteiras.
De facto, alguns produtores olham para a talha como a oportunidade de fazerem um vinho cada vez mais natural, seguindo uma filosofia de outros vinhos do seu portefólio, como sucede, por exemplo, com Vasco Croft (Casal do Paço Padreiro/Aphros Wine), que não hesitou em colocar algumas das suas melhores uvas de Loureiro dentro de uma talha. A associação a um vinho natural é potenciada pelo curioso rótulo da garrafa do Phaunus Amphora, na qual se explicita que as operações de colheita, desengaço e pisa da uva são artesanais.
Método reconhecido desde 2010
Também a Herdade do Esporão não quis perder o comboio dos vinhos cada vez mais minimalistas no que respeita a enologia (a par das preocupações ambientais, pois já conta com mais de 700ha de vinhas e olivais potenciadas pelo Modo de Produção Biológico), e produz um tinto a partir da casta Moreto, uva muito presente nos lotes tradicionais de vinhos de talha, proveniente de uma vinha plantada há 50 anos na Granja Amareleja. O vinho é certificado como ‘vinho de talha’ e, por isso, segue o método clássico de fermentação em talha revestida com pez louro e conduzida por leveduras indígenas. O vinho é mantido em contacto com as massas vínicas até 26 de novembro de cada ano e a fermentação malolática ocorre na talha.
A vinificação em talha foi reconhecida como método tradicional para a elaboração de vinho pela Portaria n.º 296/2010, de 1 de junho e com direito a uso da referida Denominação de Origem (DO). De resto, encontra-se aprovado um regulamento que disciplina a utilização da designação “Vinho de Talha” a vinhos brancos, tintos, rosados ou rosés, segundo o qual, para além da obrigação de impermeabilização das talhas e desengace das uvas, impõe-se que as massas vínicas sejam mantidas dentro da talha pelo menos até 11 de novembro do ano no qual ocorre a vinificação. De resto, o mesmo regulamento é expresso no sentido de que os vinhos com a designação “Vinho de Talha” têm de apresentar as mesmas características físico-químicas previstas para os restantes DO Alentejo, bem como do ponto de vista organolético no que respeita à cor, limpidez, aroma e sabor, ainda que levando em consideração a especificidade tecnológica do vinho de talha.
Segue igualmente o método clássico o vinho de talha do produtor Amareleza Vinhos (José Piteira), incluindo esmagamento em ripanço (mesa de desengace típica da região) e fermentação em talha, neste caso de 2000 litros. De resto, são já vários os vinhos certificados como ‘vinhos de talha’ (veja-se que são a maioria na nossa escolha), homenageando o passado do vinho alentejano, com alguns deles a alcançar um nível de qualidade verdadeiramente invejável, caso do tinto Bojador. Igualmente a um nível altíssimo encontra-se o branco Puro de Talha da José de Sousa, um dos mais fiéis representantes da fermentação em talha que privilegia ainda o estágio em ânfora durante vários meses com um filme de azeite no topo para prevenir oxidações. Um verdadeiro must!
Destaque final para as médias de pontuações e do preço dos vários vinhos provados, ambas muito elevadas, a comprovar que o trabalho feito em menos de uma década nos vinhos de talha, e nos vinhos com utilização de barro, é absolutamente extraordinário, algo só possível num país que nunca perdeu os seus costumes, mesmo os mais vetustos.