Os primeiros frutos do projecto pessoal de Mariana Roque do Vale já estão nas prateleiras das lojas e, embora assentes num histórico legado familiar, revelam um cunho muito próprio. Como próprias são as uvas utilizadas, oriundas de duas propriedades, uma na serra do Mendro, Vidigueira, outra em Moura. Objectivo declarado: expressar um lado moderno do Alentejo, com vinhos diferenciadores e produzidos em pequena escala.
Texto: Luís Lopes Fotos: Ermo Wines
Roque do Vale é um nome que soa forte juntos de apreciadores que reúnam duas condições: gostar de vinhos do Alentejo e andar por cá há alguns anos. Curiosamente, as raízes mais profundas dos Roque do Vale não são alentejanas mas sim da zona de Torres Vedras, onde a agricultura sempre fez parte da actividade familiar ao longo de muitas gerações. No entanto, foi no Alentejo, e a partir dos anos 80, que Carlos e Clara Roque do Vale deixaram marca profunda, enquanto produtores de vinho (na altura, na sub-região de Redondo, com a marca Redondo, dos rótulos com pratos de barro, ou o conhecido Tinto da Talha) e enquanto dinamizadores do Alentejo como região vitivinícola, muito tendo contribuído para a sua afirmação naqueles primeiros anos da demarcação. Neste contexto, nunca é demais recordar que Carlos Roque do Vale foi um dos fundadores da ATEVA (Associação Técnica dos Viticultores do Alentejo), que chegou a dirigir, e que Clara Roque do Vale foi a primeira presidente da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana, onde esteve 12 anos, implementando toda a estrutura de certificação e promoção dos vinhos do Alentejo e da Rota dos Vinhos do Alentejo. Em 2000 o casal lançou-se num novo ciclo empresarial e criou a empresa Monte da Capela, em Moura, recentemente rebaptizada como Casa Clara, onde produz vinhos e azeites.
Filha de Carlos e Clara, Mariana Roque do Vale tem, pois, toda esta “carga histórica” com que lidar. E, no entanto, não estava previsto que assim fosse. Licenciada em Direito pela Universidade Católica de Lisboa, Mariana desenvolveu o seu percurso
profissional na área da consultoria, da banca e de gestão, entre Lisboa e Londres onde viveu cinco anos. Em final 2019, porém, resolveu aplicar os seus conhecimentos do mundo empresarial e financeiro ao projecto Casa Clara, tornando-se sócia dos seus pais. Desde o início, porém, que ambicionou ter, em paralelo, o seu próprio negócio vitivinícola. E assim, nasceu o Ermo. “O Ermo é algo de muito pessoal”, diz Mariana Roque do Vale. “Enquanto a Casa Clara tem estatuto e perfil mais clássicos, aqui pretendi fazer algo mais arrojado, trazendo uma visão e abordagem moderna no mundo dos vinhos.” A intenção passou por criar vinhos “de baixa intervenção e de produção limitada”. Para acentuar a diferença, o conceito enológico teria de ser distinto e, foi nesse sentido que Mariana convidou Joana Pinhão para dirigir a enologia. Joana, com larga experiência no Tejo, Douro e Vinhos Verdes, nunca tinha trabalhado no Alentejo e aceitou entusiasmada o novo desafio.
ENTRE MOURA E VIDIGUEIRA
Para fazer vinho, é preciso uvas. Mariana Roque do Vale optou por basear os Ermo exclusivamente em uvas próprias. À partida, tinha desde logo o conforto da matéria prima da Herdade da Capela, propriedade da Casa Clara, a sociedade familiar. Mas a produtora queria ter algo mesmo seu e deste modo adquiriu a Quinta de D. Maria, na serra do Mendro, Vidigueira (não confundir com a quinta e marca Dona Maria, em Estremoz…). Assim, os primeiros vinhos que agora chegam ao mercado assentam nas duas propriedades e com divisão bem clara na origem das uvas: os brancos, são da Herdade da Capela; os tintos, da Quinta de D. Maria. A Herdade da Capela localiza-se na sub-região de Moura, na margem esquerda do Guadiana. É uma propriedade de 70 hectares, de suaves encostas, com solos de derivados de calcário com algum granito, à beira do espelho de água do Alqueva. Ali estão plantados 54 hectares de vinha com diversas castas tintas e brancas, mas no Ermo entram apenas estas últimas, e em concreto as variedades, Arinto, Antão Vaz, Verdelho e Viosinho, de videiras com cerca de 25 anos.
A Quinta de D. Maria encontra-se localizada na Serra do Mendro, acompanhando uma das suas encostas que desce desde a cota de 300 metros até à margem do rio Guadiana. É uma propriedade de 231 hectares, com 26 hectares de vinha em produção, 40 hectares de olival tradicional (de onde vem o azeite Ermo), montado e floresta. Os solos são de xisto e pedra rolada do rio e as variedades plantadas são exclusivamente tintas: Alfrocheiro, Alicante Bouschet, Aragonez, Castelão e Trincadeira, às quais se junta uma pequena parcela de Cabernet Sauvignon. Estas videiras, com mais de 30 anos, têm história no Alentejo. É que, a partir de final dos anos 90 e ao longo de uma década, deram origem aos famosos tintos do produtor Francisco Garcia, vinhos ambiciosos na qualidade e no preço. O que, se traz garantias da excelência do terroir, também acentua a responsabilidade de Mariana Roque do Vale, da enóloga Joana Pinhão e do consultor de viticultura João Torres.
Mariana, porém, não se limitou a recuperar as videiras plantadas naquela encosta do Mendro, com um microclima mais ameno criado pela escarpa da falha da Vidigueira. Aproveitando o relevo da propriedade, plantou 10 hectares de vinha nova, parcialmente desenhada em patamares que, de algum modo, lembram o Douro. A opção varietal passou por reforçar algumas das castas clássicas já existentes na vinha antiga (Alicante Bouschet e Castelão) e introduzir castas portuguesas menos tradicionais na região: Tinta Francisca, Tinta Miúda, Touriga Franca, Touriga Nacional e Sousão. É a expressão de “Alentejo moderno” que Mariana Roque do Vale pretende implementar na marca Ermo. “Queremos novas potencialidades para os nossos vinhos”, refere, “e estas são castas que acreditamos virem a adaptar-se bem ao clima e solo da propriedade, aportando frescura e acidez.” A experiência e conhecimento científico de João Torres foram fundamentais nesta decisão. Foi feito um estudo detalhado do solo, orientação solar e topografia do local, para que cada casta ficasse plantada na parcela mais apropriada. E a construção de parte da vinha em patamares permitiu que algumas variedades, como o Sousão, ficassem viradas a nascente, protegendo-se do calor das tardes de Verão.
ALENTEJO MODERNO
A viticultura do Ermo encontra-se no modo de produção integrada, utilizando recursos naturais e mecanismos de regulação natural, e uma parte está em processo de migração para o modo de produção biológico. “As uvas são todas colhidas à mão e na adega, tentamos ser o menos interventivos possível, apostando em fermentações espontâneas e vinhos com macerações mais suaves”, diz a enóloga Joana Pinhão. “Na base do projecto está uma visão moderna da vitivinicultura e da enologia, assente numa filosofia de sustentabilidade nos seus diversos pilares, e numa aproximação de baixa intervenção, respeitando o solo e o carácter das vinhas”, complementa Mariana Roque do Vale.
A primeira vindima (a vinificação é feita na adega da Casa Clara, em Pias) teve lugar em 2020, com os vinhos a começarem a chegar às lojas em finais de 2021. Para já, são cerca de 20.000 garrafas, mas prevê-se um crescimento suave e sustentado ao longo dos próximos anos. No mercado estão dois brancos de Arinto (um deles feito em ânfora) e um tinto de Castelão, pensado num perfil mais leve e elegante. Em breve, chegará um novo tinto, também de 2020, desta vez um blend, com as castas Trincadeira, Alicante Bouschet e Cabernet Sauvignon. Os vinhos provados prometem muito, e vale bem a pena manter este projecto Ermo debaixo de olho.
Um projecto que não se esgota no vinho, nem sequer no Alentejo. Mariana Roque do Vale é apaixonada pela arquitectura e pela maneira como o espaço influi na nossa vivência. E como quer introduzir outras formas de pensar o Alentejo e os seus vinhos, está a criar no bairro da Lapa, em Lisboa, numa casa projectada pelo arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) um espaço para jantares vínicos e provas que vai funcionar como extensão enoturística do Ermo e de outros produtores. Em princípio, os primeiros eventos ocorrerão ainda este ano. Em estudo estão também um hotel rural, uma cave de estágio e um pavilhão de provas, com assinatura de alguns dos mais cotados gabinetes de arquitetura contemporânea.
“Quero dar continuidade ao legado de meus pais, mas quero fazer mais coisas, estabelecer uma ponte para o futuro, para um moderno Alentejo”, diz Mariana. Se o Alentejo moderno é assim, venha mais.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2022)
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