Esporão: Revolução ambiental em Reguengos

Um dos maiores produtores de vinho do país decidiu trilhar, há meia dúzia de anos, um caminho praticamente vanguardista no que concerne à agricultura e ao desenvolvimento sustentável. A Herdade do Esporão é assim uma mostra impressionante do que é possível fazer em prol do ambiente e da qualidade das uvas.

 

TEXTO António Falcão NOTAS DE PROVA Nuno Oliveira Garcia FOTOS Ricardo Palma Veiga

A estrada que liga Reguengos à Herdade do Esporão passa por várias vinhas. Nesta altura, em que as plantas já começam a mostrar os primeiros, mas subtis afloramen­tos, o que mais chama a atenção é a terra nua por baixo das videiras. Os viticultores revolveram a terra entre as li­nhas de videiras para eliminar qualquer planta infestante. Uns minutos mais à frente deparamos com um panorama completamente diferente nas primeiras vinhas da Herda­de do Esporão. Linha sim-linha não existe uma autêntica floresta de plantas, que quase nos dá pelo joelho. Aguça­mos o olhar e descobrimos… favas. Em mais de década e meia a visitar vinhas nunca tal tinha visto. No caminho para os edifícios centrais, navegando por um mar de vi­deiras, o panorama era idêntico. Será que a equipa de viticultura do Esporão enlouqueceu?

Nada de loucuras
O mistério das favas afinal não é nenhum enigma. Apenas o resultado de uma estratégia apontada para a sustenta­bilidade que tem orientado toda a equipa dirigente do Esporão desde 2011. A começar pelo gestor do projecto, João Roquette, que já há vários anos consumia produtos de origem biológica e que pretendia aumentar a presen­ça internacional dos vinhos da casa. Num mundo de con­sumidores cada vez mais virado para o ambiente, o rótulo “biológico” é uma das formas de o conseguir. Mas outros factores entraram em liça, como explica João Roquette: “Descobrimos na altura que eram muito baixos os níveis de matéria orgânica e de fertilidade do solo, o que afec­tava as produções. Os solos não eram bem tratados…” A decisão de mudar de estratégia foi assim facilitada: era preciso reestabelecer um equilíbrio que permitiria produ­zir consistentemente em qualidade e quantidade e para o futuro de várias gerações.

Mãos à obra
A partir daqui o trabalho mais intenso ficou com o técnico de viticultura Amândio Rodrigues, que está no Esporão desde o início (1987). Conhece, portanto, todos os recan­tos à enorme vinha e não só, porque tem toda a parte agrícola da casa nos seus ombros. Depois de tomada a decisão, houve que investigar e Amândio não só tirou vá­rios cursos e formações no assunto como teve oportuni­dade de visitar várias explorações, e não só em Portugal. Toda a equipa veio a seguir, com formação contínua.

Na vinha, a certificação para biológico começou em 2013, numa parcela. Mas paulatinamente toda a área – em re­gime de produção integrada – começou a ser preparada para o modo de produção biológico. Em 2016 a passa­gem estava terminada, embora só levará a certificação daqui a mais dois ou três anos. A lei assim obriga. Mas afinal, o que representa passar para o “biológico”?

Respeito pela natureza
Amândio começa por nos dizer que “desde 2011 deixá­mos de usar herbicidas. E só usámos fertilizantes orgâni­cos”. Acabar com produtos sintéticos/químicos foi o pri­meiro passo mas só funciona se entrarem, em sua subs­tituição, os métodos naturais. O solo era o mais necessi­tado: para restabelecer níveis orgânicos, dar novamente vida ao solo, Amândio começou por fazer o que se chama de “arrelvamentos” entre as linhas de videiras. Podem ser de várias espécies mas neste momento a preferida foi a fava: “Tem muito mais matéria verde que, por exemplo, a tremocilha, e fixa muito bem o azoto no solo, fundamen­tal para o crescimento da videira”. Nesse período passa a ser alvo de ataques do piolho, que assim poupa a videira. O faveiro cresce quase até ao ponto da vagem, mas não mais, porque começa a retirar nutrientes da terra e a com­petir com a videira. O faval é depois triturado e deixado em cima da terra. Isso ajuda a preservar a humidade do solo na altura de maior secura. Não espantará também ver depois rebanhos de ovelhas a pastorear na vinha. Na Herdade dos Perdigões, ali ao pé, existem galinhas, que vão comendo toda a espécie de infestantes. Amândio quer experimentar agora gansos…

Sabia que…
• O Esporão possui a maior vinha contígua de Portugal, com cerca de 450 hectares (e já foi a maior da Europa)?
• Que a área total de vinha, só no Alentejo, ronda os 615 hectares e vai aumentar nos próximos anos?
• O Esporão tem um campo de castas com 189 variedades diferentes, 112 plantas de cada?

Aumentar a capacidade de intervenção
Com o solo a ser tratado, as atenções viram-se para a protecção das videiras. Reguengos é uma região seca e por isso as doenças oriundas de fungos, como o míldio, poucas vezes dão problemas. Mas em 2016 foi problemático. Especialmente se pensarmos que a área de vinha a tratar é gigantesca… O parque de máquinas foi todo para o campo e o problema resolveu-se, como recorda João Roquette: “Percebemos que bastou cobre e enxofre e capacidade de intervenção.” Ora, com toda vinha em ‘biológico’, a urgência do tratamento (o tratamento do míldio não perdoa atrasos) é muito maior. A partir daí o parque de máquinas foi alargado, tanto em número de máquinas como na capacidade destas.

Os bichos nossos amigos
2016 foi um ano atípico. A nível de protecção da videira, a grande preocupação do viticultor alentejano é, contudo, as pragas, em especial a cigarrinha verde. Este insecto adora, por exemplo, as videiras de duas castas fundamentais no Esporão: o Alicante Bouschet e o Aragonês. E aqui entraram novas estratégias, todas naturais, claro. A solução passou por fomentar a presença dos chamados ‘auxiliares’, espécies animais inimigas das pragas. É exactamente essa a função das verdadeiras sebes entre a vinha, plantadas de 50 em 50 metros. Estas sebes, diz-nos Amândio, “servem de abrigo aos auxiliares da cultura na prevenção de várias pragas, criando um equilíbrio entre predadores e a praga”. Que plantas são essas? Entre outras a Roseira Brava, a Madressilva, o Loureiro e o Rosmaninho.

Os morcegos são outro amigo predador das pragas. Graças a biólogos, descobriu-se que existiam mas se iam embora. Fizeram-se por isso abrigos para os fixar. Mas esta ‘guerra biológica’ está longe de ficar por aqui: A traça da uva, uma praga recente, tem sido combatida com sistemas de confusão sexual, que mitiga a reprodução do infestante.

Em 2016 a equipa de viticultura lançou na vinha uma espécie de ácaros que comem os que se alimentam da videira. Correu muito bem. Há ainda outras experiências a decorrer, umas com mais sucesso, outras nem tanto. “Mas aprendemos sempre alguma coisa”, afirma Amândio Rodrigues. E acrescenta: “No fundo, criámos aqui um equilíbrio de biodiversidade que tinha sido destruído ao longo dos anos”.

A água nossa amiga
Todas as iniciativas resumidamente descritas implicaram muitos estudos e levantamentos, em várias áreas do sa­ber. Uma boa parte foi para o estudo da área de vinha e os seus solos. Com 615 hectares de vinha no Alentejo, a grande maioria em Reguengos, foi um trabalho cicló­pico. Isso levou a alterar a fisionomia do terreno em al­guns sítios, com valas de drenagem que ficaram abertas e arborizadas, para refúgio das aves. Acabaram assim os problemas de encharcamento, que provocaram a morte de algumas videiras. A outra parte foi o conhecimento dos solos. Foram identificadas sete grandes áreas, com necessidades diferentes de água e de nutrientes. O siste­ma de rega gota-a-gota foi assim redesenhado e é agora controlado por um sistema informático que envolve vá­rias sondas espalhadas pela vinha. A rega está também adaptada ao tipo de vinho a que se destina a uva: as uvas para o Private Selection não têm a mesma gestão de água que as destinadas ao novo Esporão colheita. As primeiras sofrem, por exemplo, um stress hídrico mode­rado entre o pintor e a maturação. Criam-se assim bagos mais pequenos e mais concentrados. Esta estratégia é combinada com a enologia e permitiu já poupar muita água. Diz Amândio que “temos um grande cuidado na utilização da água, porque é escassa em todo o mundo e aqui também”. O próximo passo vai ficar nas mãos de um informático, que vai coligir todo um mundo de dados enviados pelas sondas, descobrindo correlações e apre­sentando-os de forma mais fácil de consultar.

Auto-suficiência quase total
A quantidade de novidades não nos cessa de espantar. Mas Amândio tem mais para contar. A começar nos restos da vinha e adega, de origem orgânica. Todos eles vão para compostagem, incluindo os da azeitona. Cerca de 2 anos depois, o composto volta à terra, como fertilizante. O caroço da azeitona vai para caldeiras, como combustí­vel. Todas as necessidades de água quente (e brevemen­te também a fria) são conseguidas internamente, sem se gastar um cêntimo em energia de fora. O panorama não estaria completo sem os painéis solares, que aqui tam­bém existem, para fornecer energia à adega. “Metade da energia que consumimos é produzida por nós”, garantiu­-nos João Roquette. “Mas o objectivo é desligarmo-nos da rede”. Impressionante…

Preparar para o clima do futuro
A passagem para uma agricultura sustentável foi enorme e certamente dolorosa no Esporão. Mas outro inimigo es­preita: o fenómeno das alterações climáticas, que amea­çam ‘secar’ ainda mais o Alentejo. A equipa técnica do Esporão está atenta e já começou há vários anos a tratar do assunto. Criou um enorme campo ampelográfico (uma colecção de videiras com mais de 180 castas!) e tem estu­dado o comportamento de cada uma ao longo do tempo.

Não só a resposta de cada casta ao meio ambiente como às respectivas agressões (doenças, pragas, stress hídrico, etc). O resto dos dados são oriundas de microvinificações de algumas destas castas.

Outra estratégia passou pela compra de terra na região de Portalegre, muito mais fresca. São duas parcelas, uma com vinha já plantada e outra com plantações em curso. Por lá vão estar umas dezenas de hectares. Outra hipótese ainda em cima da mesa pode ser o caminho para a costa alentejana, junto ao mar. “Eu gostava”, diz-nos Amândio com um sorriso. João Roquette dir-nos-ia o mesmo mais tarde. O futuro o dirá…

Enquanto falamos, o todo-o-terreno de Amândio vai per­correndo os caminhos de terra entre as vinhas do Espo­rão. Mais abaixo, a famosa barragem, quase cheia, mostra um monumental espelho de água. Foi projectada para re­sistir a 3 anos consecutivos de seca e tem agora recebido água da gigantesca albufeira do Alqueva, com enormes custos. Mas, tal como a agricultura biológica, o risco de ‘não fazer’ seria certamente muito maior.

A visita termina e a minha cabeça gira com todas as ino­vações – pequenas revoluções – que presenciámos. Esta exploração está a caminho de um modelo de agricultura que será certamente o futuro. Felizmente não é o único. Pela mente passam-me outros projectos muito avançados neste aspecto, como por exemplo a Symington, no Dou­ro, ou a Fundação Eugénio de Almeida, em Évora. Ainda assim, a última questão que me coloco é: “porque é que tão pouca viticultura portuguesa não começou ainda a tri­lhar este caminho?”.

Uma nova adega de luxo
“No Esporão, em termos de sustentabilidade, é 80% vinha, 20% adega”. É assim que David Ba­verstock, o director de enologia, inicia a sua con­versa connosco. E na adega nada melhor do que a nova instalação para vinhos de luxo. Situada ao pé do magnifico complexo enoturístico – ele próprio com muitas alusões ao respeito pelo ambiente – a nova adega é simplesmente magnifica e inovado­ra. A começar pelas grossas paredes, feitas com terra compactada, retirada da barragem do Espo­rão. O calor tem dificuldade em entrar, e o fresco em sair. O tecto falso, em jeito de decoração, é feito com aduelas de barricas . O efeito estético, cortesia de um arquitecto, é surpreendente. “Es­pecialmente à noite, com as luzes”, diz David. No centro existem vários lagares de mármore para pisa a pé, destinados aos melhores vinhos da casa, mas apenas para maceração da uva. A fermenta­ção ocorre logo ao lado, nas cubas de cimento em forma de ovo. “Este cimento permite alguma micro-oxigenação, especialmente no estágio do vinho. É quase como uma barrica velha, sem os problemas de contaminação”, diz-nos Baverstock. Não faltam ainda algumas ânforas, muito típicas no Alentejo, mas David ainda está a estudá-las. No total, a “Adega dos Lagares” pode produzir até 300.000 litros por campanha.

João Roquette, o motor da mudança
À frente dos destinos do projecto Esporão desde o início desta década, João Roquette foi o grande mo­tor da mudança para um modelo de agricultura mais sustentável. Confrontado com problemas de saúde dos solos que alimentam as suas videiras e, ao mesmo tempo, com necessidade de aumentar a presença in­ternacional do Esporão, João Roquette e a sua equipa decidiram mudar quase tudo… Ouçamos as suas pa­lavras.

O que aconteceu quando decidiram avançar para esta pequena revolução? Achei que a direcção em que o projecto estava a evo­luir, desde os anos 70, deveria ser diferente. Tínhamos também que competir com os melhores do mundo. A partir daqui foi um processo de aprendizagem… con­ferências, formações, produtores, livros, trabalhar com consultores, etc. E percebemos que é possível fazer este tipo de agricultura à nossa escala e que não é mais cara que a agricultura tradicional. E passamos da teoria à prática, arrancando com a vinha da Defesa já em biológico. É a mais antiga, com cerca de 10 anos de certificação e está de óptima saúde. As interrogações e dúvidas iam sendo respondidas passo-a-passo.

“Percebemos que é possível fazer este tipo de agricultura à nossa escala e que não é mais cara que a agricultura tradicional”

Muita gente pensa que a agricultura biológica não é rentável. Como se responde a isto? Como disse antes, não concordo. Mas percebo que possa surgir de vários factores, um dos quais é logo no período de conversão, em que não aparecem imediata­mente as mais valias de fertilidade deste modo de agri­cultura. Os solos não ficam mais férteis de repente e as produções não aumentam logo. Por outro lado, temos de ver os investimentos em equipamentos e formação das pessoas. E em estudos vários (solos, por exemplo). São análises complexas que requerem muita recolha e tratamento de informação. Por causa disso – e porque encontram os produtos biológicos mais caros no mer­cado – é que acho que muita gente pensa que a agri­cultura biológica é mais cara. Por outro lado, não temos que medir o custo por hectare mas o custo por quilo de uva. No fundo, a nossa passagem foi um processo de aprendizagem contínuo e acho que os riscos foram muito baixos. O maior risco, afinal, era não fazer nada.

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