A massa para além da massa

Cada vez que olhamos para os cotovelinhos de massa alimentícia estamos a pôr os olhos em séculos de história. Desde sempre as massas nos fizeram falta, e hoje não fazem menos. Os portugueses adoram massa e a oferta actual permite muito mais por onde escolher.

 

TEXTO Fernando Melo FOTOS Ricardo Palma Veiga

SERIA tudo mais simples se o que tivéssemos à mão fosse tudo o que precisássemos de saber. O conhecimento, no entanto, é essa bola inexorável que aumenta à medida que vamos aprendendo e assimilando mais, com o efeito inevitável de aumen­tar indefinidamente a fronteira com o que não sabemos. Na alimentação, quanto mais simples é o que comemos maior e mais complexa é a sua história. Regra básica que resiste e assiste a tudo o que consideramos óbvio à mesa.

Não existe mundo sem massas alimentícias, desde as le­trinhas com que brincámos em pequenos na canja de ga­linha até aos sofisticados ravioli trufados com que nos de­liciamos nos melhores restaurantes. Assunto italiano por excelência, se não olharmos para a China, onde há 4 mil anos se pratica a arte da massa tal como a conhecemos. Farinha e água é a base mais cândida e elemento unifica­dor do que entendemos por massa, sendo certo que até atingir a forma de produto final ainda leva gema, claras, e as sêmolas de trigo variam na composição e dureza.

As massas frescas, como o nome diz, são feitas no mo­mento e é normal incorporarem ervas aromáticas frescas, condimentos diversos, quando não mesmo feitas na cozi­nha pela mão do cozinheiro, amassando mariscos ou le­gumes juntamente com a farinha, para depois produzir os formatos standard, spaghetti, tagliatele, linguini, capelli­ni, ravioli, caneloni, penne, penne rigate, entre tantos outros. Não há limite para a criatividade e alguns atrevimen­tos já estão eternizados, juntamente com os seus autores. Os ravioli invertidos de Santi Santamaria, que os há-de estar a fazer todos os dias no Olimpo, e os de Heinz Beck, ainda disponíveis no Gusto, do hotel Conrad no Algarve, são dois grandes exemplos de uma mesma abordagem.

Esta forma de produzir massa, ainda que à base da mes­ma farinha das outras mesas, era uma variação vulgar entre os pescadores italianos de outrora. Trituravam os peixes mais pequenos que vinham nas redes e produziam uma massa com farinha, água e ovos – quando havia –, que comiam depois de dar a forma adequada. Raramente se secava, e tinham a grande vantagem de ser ricas em proteínas, com a dupla função de reposição de energias ao fim do dia e alimento para toda a família. Um pouco o mesmo que os nossos antigos faziam, fritando e escabe­chando os peixes de bitolas mais pequenas, reservando­-se para comer mais tarde.

O aspecto do molho é muito importante e está intima­mente relacionado tanto com a massa enquanto prato – relação evidente – como com a forma da massa. Pois é. O lado decorativo e o divertido que é ter recipientes trans­parentes em exposição na cozinha com os diversos tipos de massa, tem importância histórica. Arquéstrato (Grécia), no séc. IV a.C., e Apício (Itália), no séc. I d.C., referem­-se-lhe como algo indiscutível e fundamental. As massas rugosas – rigate –, por exemplo, aumentam a superfície eficaz em contacto com o molho, mínima no caso das li­sas. As massas perfuradas, ou ocas, caso extremo nos ca­neloni, exemplo sofisticado nos bucatini, que é spaghetti oco, apresentam a capacidade dupla de reter sabor.

Tudo tem uma razão de ser e é por isso mesmo que me custa que corra a ideia de que se escolhe a massa e depois se faz o molho. O melhor tira-teimas é produzir spaghetti e penne rigatti em quantidades semelhantes e depois aplicar-lhes um molho simples, de tomate, na mesma quantidade. A forma como cada uma estimula o palato é radicalmente diferente, chegando a parecer um outro molho. Talvez por isso, e porque estamos um pouco na era das alergias e sensibilidades gástricas, a procura por substâncias e massas mais anódinas veio exacerbar justamente a diferença entre molho e massa. O glúten é o primeiro grande inimigo a abater e neste capítulo não há discussão, a reacção pode ser mais rápida do que na asma e as pessoas podem mesmo morrer. Acontece pou­co, porque as quantidades ingeridas são felizmente pequenas, mas há que ter conta o que desde há muito se sabe.

O trigo sarraceno é uma alternativa válida e à partida não tem glúten. Dizer que é trigo é um abuso de linguagem, porque é uma gramínea semelhante ao arroz, a partir da qual se obtém por moagem uma farinha de cor nacarada, escura. Por isso se chama sarraceno, ou mouro. Em prin­cípio não contém glúten, mas há que ler com cuidado a embalagem, muitas vezes tem farinha de trigo misturada, ainda que em pouca quantidade. A massa de trigo sarra­ceno tem mais fibra e nutrientes do que as outras e liga na perfeição com legumes cozidos – mesmo quem não tem restrições alimentares deve um dia experimentar, por ser uma base bastante flexível para criar pratos novos. Os mais novos costumam gostar. A massa japonesa soba é de trigo sarraceno, quem já experimentou sabe o acres­cento de gosto que tem.

Sabia que…
A ‘massa-maravilha’ é a shirataki. Não tem gordura, calorias nem açúcar, o que a configura como a dieta zero.

Semelhante em efeito é a massa de arroz integral, haven­do, como em todos os cereais integrais, que adaptar os tempos de digestão e carregar menos na proteína animal ao compor o menu. De resto, de arroz saem massas maravilhosas, finas e neutras, que se usam muito na cozinha chinesa. Absorvem depressa fumos e temperos, além de fritar bem na wok. A massa tida como massa-maravilha é a shirataki. Não tem gordura, calorias nem açúcar, o que a configura como a dieta zero. Produz-se a partir de ba­tata-konyaki, ou konjac, e tradicionalmente utiliza-se em saladas. É preciso cuidado com ela, apesar de inofensi­va e inócua, porque não tem mesmo proteína alguma, pelo que há que a enriquecer bastante. Mais consensual mas também mais desconhecida é a quinoa, livre de pra­ticamente tudo o que faz mal. Originária do Perú, já se encontra disponível em lojas especializadas, preparada e formatada para cozinhar como as massas normais.

Alguns legumes, levantada fervura, ganham consistências interessantes e permitem um manuseamento original. A batata-doce é um ingrediente bastante flexível e, dado o seu conteúdo misto de amido e açúcar disponível, per­mite produzir maravilhosos gnocchi, por exemplo. A be­ringela está na moda e pede corte em folhas como a la­sanha, com o posterior processamento de acordo com o receituário clássico, incluindo o forno. Produz-se em casa sem grande dificuldade um fantástico e surpreendente prato de massa a partir de courgette, tagliatelle divinal, quando se junta um queijo fresco ou requeijão. A abó­bora também gosta de se transformar em massa, e além de saudável tem um gosto em morna que é evocativo da sopa, pelo que facilmente é aprovada à mesa. O pepino depois de escaldado permite extrair folhas contínuas que pacientemente envolvidas em natas, queijo ou crème­-fraiche ganham vida nova. Pode fazer-se de várias formas e acompanha aves como poucas outras. Importante é o prazer que dá e há muito prazer à espera de quem ousa sair do trilho da compra de produto standard no super­mercado e transformação posterior como as de sempre.

Em quente, morno, frio ou gelado, a saga das massas ita­lianas já se prolonga para além da própria massa. Boas provas e boa sorte!

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