O Sado de copo na mão

Num país com muito vinho, alma de marinheiro, belos rios e largas centenas de quilómetros de costa, seria de esperar que os cruzeiros vínicos fossem coisa comum. Estranhamente, não são. Mas no Sado eles fazem parte da paisagem já há quatro anos. Crónica de um final de tarde de copo na mão, entre vinhos, paisagem e golfinhos. Viva o Verão.

 

TEXTO Luís Francisco FOTOS Ricardo Palma Veiga

O sol ainda vai alto nesta tarde de Agosto, reforçando o apelo da brisa fresca e do brilho das águas no estuário do Sado. No cais, em Setúbal, junta-se um grupo relativamente heterogéneo de pessoas – portugueses e estrangeiros, novos e mais velhos, casais e grupos alargados – que aguarda o sinal verde para embarcar no “Mil Andanças”, a embarcação onde se renovará hoje uma tradição cada vez mais forte do Verão setubalense: o cruzeiro vínico de sábado. Desta vez, abrilhantado pelos vinhos da Adega Fernão Pó.

A ideia, fomentada pela Rota dos Vinhos da Península de Setúbal, surgiu há quatro anos e o número de produtores aderentes tem crescido todos os anos, até ao ponto de, em 2017, as 18 datas disponíveis no Verão (de 3 de Junho a 30 de Setembro) estarem todas ocupadas. E com muita procura. Pudera: a experiência é fantástica, mesmo para quem não seja fanático do vinho. A visão da Arrábida no enquadramento do pôr-do-sol, a península de Tróia e o casario de Setúbal, o plano de água e o movimento dos navios, as praias e os golfinhos. Sim, os golfinhos. Lá iremos.

O trajecto entre Setúbal e o cais de Tróia, segundo ponto de entrada de participantes no cruzeiro, serve praticamente de aperitivo. O sol ainda vai alto, as águas animam-se com carneirinhos de espuma, as pessoas arrumam-se nas cadeiras do deck superior ou nos bancos almofadados cá em baixo – a sala interior ainda está encerrada, enquanto se prepara a prova de vinhos.

A saída de Tróia marca o início das hostilidades. Toda a gente é convocada ao deck superior para se fazer a apresentação do produtor da semana, neste caso a Adega Fernão Pó. João Palhoça, enólogo, resume em duas ou três frases a origem familiar da empresa e lança uma primeira luz sobre os vinhos que iremos provar de seguida. Palavras não eram ditas e eis que toda a gente volta a descer, desta vez com o vinho em linha de mira. E a primeira rodada é sempre a mais difícil…

Seja porque a sede aperta, seja porque os balanços da barra pregam partidas a quem não está habituado, gera-se um ajuntamento na zona de serviço, onde também está disponível uma mesa com petiscos (pão, tostas, queijo, chouriço, presunto, entre outras iguarias)… Mas depressa o ritmo serena e podemos provar o branco de entrada de gama, a que se seguirão um rosé, outro branco (este um varietal de Viosinho) e uma série de tintos (quatro, no total) que culmina no Reserva da casa.

O passeio e o vinho
Aos poucos, as conversas distendem-se, os sorrisos alargam-se e os grupos misturam-se. Um pouco à parte, Kaeszar, um dentista londrino, e a sua mulher, Alia, estão mais confinados pela barreira da língua, mas todas as explicações sobre os vinhos e o passeio são também dadas em inglês. Estão de férias em Tróia – “No Reino Unido ninguém sabe que isto existe!”, espanta-se Kaezar – e um amigo alentejano sugeriu-lhes o cruzeiro. “Adoramos barcos e sunsets”, explica Alia; o vinho é uma espécie de bónus. E, por falar em extras, é por esta altura que soa o aviso: “Golfinhos à esquerda!” E por momentos tudo passa para segundo plano, enquanto os dorsos cinzentos dos roazes dançam na espuma mesmo debaixo dos nossos olhos.

A seguir o vento prega-nos uma partida e fustiga o navio durante alguns minutos, levando consigo algumas almofadas e obrigando toda a gente a abrigar-se no interior, face à ameaça dos salpicos. O “Mil Andanças”, que já há-de ter visto bem pior do que isto, apressa-se a rumar à linha de costa da Arrábida, onde ficará mais resguardado deste súbito mau humor da meteorologia. Curiosamente, mais do que susto ou enjoos, o que se vê a bordo são sorrisos rasgados pelo pitoresco da situação. E, claro, há quem nunca tenha pousado o copo e prossiga, impavidamente, com a prova dos vinhos Fernão Pó.

Giovani e Neia, marido e mulher, brasileiros, vivem em Setúbal há 16 anos e esta é a segunda vez que embarcam num destes cruzeiros vínicos. “Aproveitamos o passeio de barco – é uma cidade bonita, mas vista daqui é um espectáculo – e o vinho. Ela é mais de vinho do que eu, mas no Inverno também ponho de parte a cervejinha e troco por um tinto”, elucida ele, enquanto Neia garante que ambos são fãs dos vinhos da Península de Setúbal, mas que há uns de que gostam “mesmo muito”: “Os do Alentejo!”

O sol já se pôs lá fora e agora navegamos placidamente ao longo da costa, bordejando línguas de areia que em breve desaparecerão na maré cheia. Numa delas, um audaz (ou distraído) pescador continua a fazer lançamentos com ar compenetrado e água pelos joelhos, aparentemente alheio ao facto de em breve poder ficar sem luz e com o caminho de regresso a terra cortado pelas águas. Ele lá sabe…

Um pedido de casamento
Numa mesa, Joana, Tito, Teresa e Carolina, mais “o pai João e a mãe Paula”, uma família de seis que mora do Seixal, estão a confirmar as boas coisas que foram ditas à última por pessoas conhecidas e que os levaram a inscrever-se no cruzeiro. Mas há membros que estão “fora-da-lei” e bebem sumo… “Acho que as pessoas vêm pela experiência geral, os mais novos provavelmente mais pelo barco e pelo passeio do que pelo vinho.” Mas os argumentos vínicos têm em Tito um veemente tribuno: “Provas de vinhos há muitas; num barco é que não!”

E esta será, provavelmente, a frase a reter neste animado anoitecer setubalense. O apelo conjunto do passeio de barco, das paisagens, dos golfinhos e do vinho ajuda a compor um cocktail sedutor. Para os produtores, é uma excelente oportunidade de mostrarem os seus vinhos e recolherem reacções em primeira mão. “Este é o quarto ano em que aderimos aos cruzeiros. Mudámos a imagem há cinco anos, sentimos necessidade de nos darmos a conhecer”, explica Isabel Palhoça, da Adega Fernão Pó.

Nos últimos três anos, a organização dos cruzeiros vínicos passou a ser responsabilidade da SadoArrábida, com apoio da Rota dos Vinhos da Península de Setúbal. Joaquim Ferreira, director da empresa, não tem dúvidas: “É um sucesso. Muito público, quase sempre lotação esgotada, sempre boa disposição a bordo.” Os portugueses são os principais clientes e foi mesmo lusitano o momento mais inesquecível, quando, recorda Isabel Palhoça, num dos cruzeiros da Adega Fernão Pó aconteceu um pedido de casamento… “Era um grupo grande, toda a gente aplaudiu, foi muito bonito!”

Desta vez não houve joelho no chão nem anel no dedo, mas o ambiente foi sempre descontraído. À medida que a noite caía e o vento amainava, cada vez mais gente se foi dirigindo ao deck superior, a música dos Abba marcando o percurso final do passeio, o vinho lubrificando as conversas. Quando chegamos ao cais, agora com os Heróis do Mar a cantarem “Paixão”, é preciso fazer um apelo pela instalação sonora, explicando que a embarcação tem ainda de rumar a Tróia, para que os passageiros comecem a sair. Não há bem que sempre dure, mas a vantagem aqui é que podemos sempre repetir no sábado seguinte. E com vinhos diferentes para descobrir.

CRUZEIROS ENOTURÍSTICOS NO SADO
SadoArrábida
Tel: 915 560 342
Mail: geral@sadoarrabida.pt
Web: www.sadoarrabida.pt
O cruzeiro pelo estuário do Sado, baía de Setúbal, costa da Arrábida e Tróia inclui observação de golfinhos, música, provas de vinhos comentadas por enólogos das adegas convidadas e degustação de queijos, enchidos e doçaria tradicional. Tem uma duração de 2h30 e embarque às 18h30 (Setúbal, doca das Fontaínhas) ou 18h50 (marina de Tróia). Os bilhetes custam 30 euros para adultos e 17,5 euros para crianças dos 6 aos 12 anos. Sempre com marcação prévia. Em Setembro as datas incluem A Serenada (no dia 2), Quinta da Serralheira (9), Herdade da Comporta (16), Península de Setúbal (23) e o cruzeiro de encerramento (30).

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