Queijo e vinho são combinação frequente e, no entanto, não há grandes registos de na história da alimentação haver quem fizesse ambos muito bem. Isto porque cada um pressupõe grande especialização na respectiva área, raramente concebidos para viver juntos e felizes para sempre. Óptima altura para abalar um pouco os fundamentos e repensar o assunto.
TEXTO Fernando Melo FOTOS Ricardo Palma Veiga
CADA um tem as suas experiências e histórias diferentes de harmonizações de sucesso ou fracasso e cada um integrou os seus dogmas no sistema próprio de prova. Eu habituei-me aos queijos postos na mesa nos dias de festa, para ir debicando e lascando com um copo de espumante ou vinho branco na mão enquanto vinham chegando as pessoas. O queijo Serra da Estrela – a que se chamava simplesmente queijo da serra – vinha de novo no final, para acompanhar com um Porto Vintage. Hoje penso e faço tudo de outra forma, porque tive a sorte de nunca deixar de gostar muito de queijo. Sempre lhe dediquei tempo e provas aturadas e sempre lhe descobri novos ângulos e harmonizações possíveis.
Claro que compliquei tudo, ao entrar pelos diferentes tipos, denominações de origem e afinações de queijo, a ponto de em 2002 ter ido a Londres provar queijo Stilton, referido por todos os produtores de Vinho do Porto como a grande ponte com o Porto Vintage. Publiquei no “Expresso” então um artigo que dava conta da Londres gourmet que fui encontrar e desconhecia por completo. Sobre a bondade da harmonização em si, confesso que voltei cheio de dúvidas, tal a variabilidade que detectei. Quando falamos de Stilton de leite (de vaca) cru, coalhado com flor de cardo natural, é um produto fantástico, mas quando o leite é pasteurizado, o confronto é ruinoso. Ainda hoje me sai assim.
Acontece que o nosso Serra da Estrela é produzido a partir de leite cru de ovelha, o coalho é produzido de forma natural com flor de cardo natural e o sal é integrado na perfeição. É talvez mais copioso que o Stilton de quinta, mas a regra antiga não estava mal de todo. Ainda há bem pouco tempo provei um bom queijo Serra da Estrela com um Vintage 2007 e soube-me pela vida. Mas não é verdade que seja a melhor ligação, porque ao pé de um bom Encruzado – casta rainha branca do Dão – nada mais funciona tão bem com o Serra da Estrela. E agora? Um Porto Vintage e um branco seco do Dão lado a lado, quando pouco ou nada têm em comum? Dá pelo menos que pensar.
A importância da proximidade geográfica
O raciocínio da proximidade geográfica que está na base do sucesso do Encruzado num produto da mesma região como é o caso do queijo Serra da Estrela é inteiramente válido. Aliás, sempre que ambos – vinho e comida – têm já um historial conhecido, mesmo separadamente, é sempre de tentar a harmonização. Um outro caso, vinho verde tinto com cabidela de lampreia, não deixa margem para dúvidas. A única condição é gostar muito de ambos, o que raramente é o caso.
A validação de uma boa harmonização tem de ser universal, o que põe ao rubro a natureza essencialmente diferente que têm o vinho e a comida. Além de que quem não gostar de comida salgada no geral nem de queijo em particular nunca irá entrar no universo que é maravilhoso para os amantes de queijo. À medida que os queijos vão envelhecendo vão perdendo água e apurando o picante e o salgado, o que é outro aspecto relevante no cenário e que leva muitos a abandonar o barco queijeiro. Se estamos a comer a medo, dificilmente vamos gostar seja de que harmonização for.
O leite, em particular a caseína, e a gordura são alvo tradicional de atenção, e a relação simples do corte, ou destruição, ocupam o pensamento de quem tem de encontrar as melhores pontes queijo e vinho. É verdade que amaciam os taninos duros que por vezes o vinho apresenta, mas também é verdade que sem humidade relativa considerável não é possível qualquer êxito na abordagem. Vistas bem as coisas, isto não devia surpreender ninguém, a história desde o leite líquido até ao queijo velho totalmente sólido é pouco mais do que a redução progressiva da humidade. Mas o corolário desse fenómeno é também que tanto a proteína como a gordura aumentam a concentração. Pede por isso vinhos mais encorpados e vigorosos.
Depois vem a questão da acidez, outro dado físico químico do vinho que tem, de certa forma, servido como ponto chave para encontrar boas pontes de harmonização. O caso do Encruzado e Serra da Estrela, contudo, orienta-nos para patamares mais complexos; a acidez como lâmina afiada para cortar a gordura levaria a que um vinho com 9g/l de acidez seria sempre o ideal para o queijo, o que está longe de ser verdade. O nosso palato é uma fábrica de novas moléculas e é a isso que chamamos gosto. Por uma estranha razão, as reacções de todos são semelhantes, e é isso que torna universal uma boa ligação. As oposições doce-salgado ou amargo-suave, só por si são insuficientes para dar boa saúde à comunicação os componentes líquido e sólido.
Uma harmonia ainda em construção
A dança da harmonia entre vinho e queijo está longe do fim. A pressão para diminuir o teor de sal nos queijos está a mudar drasticamente o cenário e a tendência para descer a força tânica e o grau alcoólico dos vinhos vai instalar-se não tarda. Tudo vai em breve saber a outra coisa e nós vamos ter de acompanhar. O momento mais vibrante da refeição poderá vir a ser o início ou um qualquer ponto intermédio, quem sabe se os queijos não vão passar a ser propostos no meio da refeição? Talvez até faça mais sentido do que ao chegar ao fim encontrarmos um desafio titânico de proteínas que pedem vinhos de monta. Enquanto o mundo não começar a girar ao contrário, vale a pena fazer um périplo por alguns dos nossos queijos e dar-lhes aconchego vínico. Temos razões para acreditar que o diálogo existe e é pacífico. Boas experiências!
Cabra
Tem teor baixo de gordura e sódio e um sabor bastante intenso, de resto como o leite de cabra que lhe está na origem. Bom conteúdo de vitaminas e minerais, pelo que é à partida um alimento equilibrado e pronto a harmonizar com bons resultados, de forma geral. Há um cuidado a ter com o que se compra, que é o sal que contém. Sabemos que é utilizado para moderar a actividade microbiológica, pode haver tendência para o excesso para garantir que o queijo está estabilizado quando vai para casa do cliente. Quando equilibrado, contudo, é uma maravilha com um Sauvignon Blanc ou um Viognier.
Terrincho
Feito com leite cru de ovelha churra da Terra Quente, em Trás-os-Montes, tanto se encontra em pasta semi-dura como dura, caso do Terrincho Velho. Mais um caso que conseguimos resolver bem na região, os Arintos que medram para lá do Marão são salinos, frescos e dão bom corte ao apessoado queijo. Para o Terrincho Velho, mude para um Tinta Amarela transmontano, delícia garantida.
Nisa
Abastece Portalegre há gerações este queijo único, produzido a partir de leite cru de ovelha Merina Branca, em bitolas pequenas, normalmente merendeira, que também se leva a assar inteiro. Muito intenso no aroma, é ligeiramente ácido na boca. Um bom Alicante Bouschet vai gostar de conversar com ele, assim como um tinto de vinhas velhas da Serra de São Mamede.
Serra da Estrela
É o porta-estandarte dos queijos portugueses e hoje há que aprender a dar com ele nas boas queijarias. Talvez um dia o cenário se componha, mas actualmente é importante ter confiança em quem o produz. Adora brincar com os brancos estremes de Encruzado e, quando mais velho, conversa bem com um bom Jaen. Ambos do Dão, como é evidente.
Serpa
É divino quando é bom, e a técnica é em tudo semelhante à do Serra da Estrela, acrescida de alguns rituais herdados que fazem a diferença. O corte do coalho em quatro movimentos e o pano de filtração do leite sobrado quatro vezes são dois deles. Tintos velhos – mais de 30 anos – harmonizam bem, e os tintos de talha são companhia valente.
Castelo Branco
Malvasias e Arintos dos granitos mais a norte, seja de Pinhel ou de Figueira de Castelo Rodrigo vestem este queijo como um príncipe. O cardo costuma pronunciar-se muito na cura do queijo, e a versão picante – que existe sempre, trate-se do picante ou não – pode ser muito pungente.
Azeitão
Consta que foi alguém que colocou na região ovelhas trazidas da Serra da Estrela e que todos os anos mandava vir alguém daquelas paragens para lhe fazer o queijo, porque queria tê-lo em casa também nas latitudes mais baixas. Nasceu o Azeitão, que acrescenta em sabor e sofisticação pela forragem onde pastam as ovelhas. É imperativo dar-lhe a companhia de Moscatel de Setúbal com alguma idade, ou brancos das vinhas de areia, que as há ali.
Ilha de São Jorge
É talvez o campeão do umami, dentre todos os queijos nacionais. Complexo e intenso, fica na boca e quando ainda não está demasiado curado (4 ou 6 meses) vai muito bem com Chardonnay com mais de 10 anos ou Pinot Noir recente. Uma aventura bem-sucedida.