Trás-os-Montes: O carácter das montanhas, vales e planaltos

Paradoxalmente, a denominação de origem mais recente em Portugal, tem uma história vitivinícola milenar impressa nas rochas em forma de lagares rupestres espalhados pela região, testemunhas dos tempos romanos e pré-romanos. Uma região maravilhosa, isolada do mundo pelas cadeias montanhosas, escondida nos vales, estendida nos planaltos, está à espera de ser descoberta.

TEXTO Valéria Zeferino
FOTOS Mário Cerdeira

Se “é mais difícil ir ao Meão do que a Luanda”, como dizia Fernando Nicolau de Almeida, Trás-os-Montes deve-se comparar ao fim do mundo, pelo menos, português. É uma região selvagem e apaixonante com características ímpares e algumas surpresas no futuro mais próximo.
O seu nome é autoexplicativo. É a única região com verdadeira viticultura de montanha em termos edafoclimáticas, sendo toda formada por estruturas montanhosas de 350 a 650 metros de altitude. Tem um clima de fortes contrastes. Regista amplitudes térmicas das mais pronunciadas no país, que permitem um amadurecimento mais lento, com tempo suficiente para desenvolvimento de precursores aromáticos e menor degradação dos ácidos.

Atrás dos Montes

A distância do mar reforçada pela barreira montanhosa do Gerês, Cabreira, Alvão e Marão (todas com altitude de mais de mil metros) que criam uma protecção das influências atlânticas, aumentando continentalidade de Oeste para Este. Com base nos dados recolhidos nas estações climatológicas de Chaves e Miranda do Douro, o clima transmontano classifica-se como temperado, com noites muito frias e seca moderada.

Os concelhos situados ao longo da fronteira nordeste com Espanha – de Vinhais, Bragança, Vimioso, Miranda do Douro e Mogadouro fazem parte da “Terra Fria” com verões menos quentes, ao contrário da “Terra Quente” com temperaturas de verão superiores. A região é constituída por três sub-regiões com condições bem distintas: Chaves, Valpaços e Planalto Mirandês.

A sub-região de Chaves é delimitada pela fronteira com Espanha a norte e rodeada pelas serras montanhosas: do Larouco (com altitude máxima de 1525 metros) e do Barroso a noroeste (1279 metros), da Cabreira (1261 metros) a Oeste, do Alvão (que é um prolongamento para norte da Serra do Marão) a Norte e da Padrela a Sudeste. É atravessada pelo rio Tâmega e as vinhas situam-se nas encostas de pequenos vales, correndo em direcção ao rio.

O mesoclima é o mais chuvoso das três sub-regiões, dada a menor continentalidade, moldado sobretudo pelas montanhas, e caracteriza-se pelos invernos longos e rigorosos e verões curtos e quentes. Bastante humidade no Inverno e Primavera é propícia a geadas primaveris, pelo que alguns produtores vêem-se obrigados a investir em soluções anti-geada. Os solos, maioritariamente graníticos (com algumas manchas xistosas) com baixa fertilidade e uma boa drenagem promovem o stress hídrico necessário para maturações equilibradas. A vegetação abundante de castanheiros, carvalhos e pinheiros, com elevada transpiração, aumenta a humidade relativa face à restante região.

A sub-região de Valpaços fica na diagonal entre Bragança e Vila Real. É circundada pela serra da Coroa a Norte, da Padrela a Oeste, de Bornes a Sudeste e Nogueira a Este. Nas encostas dos rios Tua, Rabaçal e Tuela que atravessam a região, proporcionam-se microclimas favoráveis a boas maturações. De um modo geral, nesta sub-região as temperaturas durante o verão são mais elevadas e os valores de humidade relativa e de precipitação inferiores. Esta sub-região ainda “apanha” três sub-zonas diferentes. A Terra Fria, mais a Norte, nas cotas mais altas de 600 metros de altitude com pluviosidade elevada e solos mais graníticos. Adapta-se bem à produção de vinhos brancos. Mais a Sul, menor altitude, de 350-400 metros, declives pouco acentuados e predominância de solos xistosos que aquecem mais diminuindo as amplitudes térmicas. Tem pouca vegetação e regista precipitação mais moderada com fortes incursões de calor. É o domínio da Terra Quente. Entre estas duas fica uma zona de transição, de altitude intermédia. Estas duas zonas são conhecidas pelas condições para produzir grandes vinhos tintos.

O Planalto Mirandês é a sub-região que fica no Nordeste do país, com a continentalidade mais pronunciada. A Norte é limitado pela fronteira com Espanha, a Este pelo rio Douro intenacional e a Oeste pelo rio Sabor. Como o próprio nome indica, abrange uma boa parte planáltica da Terra Fria nas altitudes de 350 a 600 metros e solos maioritariamente xistosos. As zonas mais quentes situam-se mais a Sul nas arribas do Douro internacional. Os planaltos caracterizam-se pelos ventos bastante fortes, o que, conjugando com a baixa pluviosidade (precipitações praticamente nulas durante a fase activa do ciclo vegetativo) faz com que as doenças criptogâmicas da videira não se instalam. Naturalmente baixa necessidade em tratamentos, promove condições para agricultura biológica.

Para além da muita vinha velha plantada tradicionalmente em taça, aqui é praticada uma forma própria de condução chamada cabeça de salgueiro. Segundo, Luís Sampaio Arnaldo, da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, profundo conhecedor da região, é uma condução baixa a 30 cm com 4-5 talões pequenos. O cacho fica “resguardado no interior da videira”, evitando escaldões, sendo protegido do “vento que levanta por volta das 11 da manhã”, e curiosamente, também da humidade. O orvalho de manhã fica fora da planta e por dentro os cachos mantêm-se secos.

Um bom estado sanitário das vinhas, exige poucos ou nenhum tratamento. Por isto não é de estranhar que de acordo com os dados mais recentes da Direcção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural “a vinha em agricultura biológica tem a sua maior expressão em Trás-os-Montes, correspondendo a sua superfície a 1.246ha, cerca de 36% da área total”. Depois seguem-se a região do Alentejo com 28% e da Beira Interior com 21%.

Multiplicidade de microclimas

Falando de Trás-os-Montes, não podemos esquecer que os factores de altitude, declive, exposição, proximidades dos rios, distância e maior ou menor protecção da influência atlântica, diferenças em composição de solos, criam uma multiplicidade de meso e microclimas que vão muito para além das três sub-regiões. Sabemos que a altitude é o factor que mais condiciona o clima das montanhas uma vez que a temperatura desce com a altitude, em média, cerca de 0,65˚C por cada 100 metros. Para além disto, as cadeias de montanhas interferem com a circulação atmosférica, determinando também circulações próprias entre os vales e as elevações adjacentes através dos ventos catabáticos (descendentes) e anabáticos (ascendentes) que acabam por modificar o mesoclima.

Os valores de precipitação podem variar significativamente em função de continentalidade e topografia. Aumenta à medida que vamos subindo do nível do mar para as zonas montanhosas do litoral, a partir das quais desce drasticamente nos vales encaixados do interior. Sobe novamente à medida que a altitude vai aumentando na montanha seguinte para depois descer no próximo vale, dependento, no entanto, das respectivas altitudes. No que respeita à distribuição das médias das temperaturas máximas e mínimas, nas cadeias montanhosas muitas vezes acontece o fenómeno das inversões térmicas, quando se registam temperaturas mais altas numa zona de maior altitude e mais baixas numa zona adjacente de menor altitude.

Castas

De acordo com os dados do Instituto da vinha e do Vinho (IVV) de 2018 a vinha ocupa em Trás-os-Montes 13.539 hectares. Para a DO Trás-os-Montes são permitidas 15 castas brancas e 17 tintas, mais o Moscatel Galego Roxo na sub-região de Chaves. Para o vinho regional (IG) Transmontano são também autorizadas as castas internacionais como Chardonnay, Chasselas, Gewürztraminer, Riesling, Sauvignon Blanc, Pinot Noir e Syrah, por exemplo.

A casta mais plantada na região é a omnipresente Tinta Roriz (2.189 ha), dispersa em todas as três sub-regiões. Prefere climas quentes e secos e solos bem drenados. Precisa de grandes amplitudes térmicas como em Espanha na Ribeira del Duero, e em Portugal nem sempre as tem, o que explica a sua variabilidade qualitativa. A segunda casta mais plantada é a Tinta Amarela (1.343 ha). É bastante produtiva, de maturação média, acumula bem os açúcares, mantendo bom nível de acidez e de cor. É necessário controlar o seu vigor e rendimento. Com os cachos muito compactos é especialmente sensível ao oídio e precisa de um sítio bem arejado. Apresenta um bom e regular potencial qualitativo e, segundo Luís Sampaio Arnaldo, é das castas que mais resiste ao aquecimento. É plantada nas três sub-regiões, com mais incidência em Valpaços, onde é conhecida como “Negreda”, provavelmente por causa da intensidade cromática, comparativamente com as castas como Bastardo, Marufo, Cornifesto e Tinta Carvalha.

A terceira casta mais plantada é exclusiva da sub-região do Planalto Mirandês onde ocupa 1.296 ha. Chama-se Tinta Gorda (ou só Gorda), devido ao bago bastante grande. É medianamente produtiva e o seu potencial qualitativo é regular. Possui baixo potencial alcoólico (dificilmente chega as 11%) e acidez média. Não dá muita cor e apresenta aroma simples de frutos vermelhos. É muito provável que tenha vindo do Noroeste de Espanha, onde é conhecida como Juan García. Entretanto, Luís Sampaio Arnaldo diz que há dois tipos desta casta, sendo um deles com bagos mais pequenos. Touriga Nacional (1.169 ha) e Touriga Franca (973 ha) são bastante populares em Trás-os-Montes e encontram-se em todas as três sub-regiões. Bastardo, de ciclo curto e muito precoce, sendo vindimado cedo, acaba a fermentação alcoólica e maloláctica na adega antes do inverno. Também é plantado em todas as três sub-regiões. Nas vinhas velhas há muita Baga com a alcunha local “Bastardo de Leiria”. Esta dá-se melhor na mais fresca e menos seca sub-região de Chaves.

As castas brancas mais representativas da região são Viosinho, Gouveio, Códega do Larinho, Rabigato, Malvasia Fina e Fernão Pires. Os vinhos brancos são maioritariamente de lote. Viosinho é de génese transmontana, encontra-se dispersa pelas vinhas velhas. O facto de ser pouco produtiva e com rendimentos muito baixos explica a sua popularidade reduzida. Ultimamente tem vindo a ser mais valorizada pelo excelente equilíbrio entre açúcar e acidez, proporcionando vinhos estruturados e encorpados. É regularmente lotada com outras castas, para acrescentar acidez e riqueza aromática. Gouveio foi durante anos foi catalogada erradamente como Verdelho, o que conduziu a algum desacerto entre as duas nomenclaturas.

É uma casta produtiva e relativamente temporã, medianamente generosa nos rendimentos. Sendo naturalmente rica em ácidos, proporciona vinhos frescos e vivos com bom equilíbrio entre acidez e açúcar e aromas citrinos com notas de pêssego e anis. Códega do Larinho é bastante aromática a expressar-se com sugestões intensas de fruta tropical e flores e, desde que seja vindimada no tempo certo (com 11-11,5% de álcool provável), é capaz de dar bom resultado. Síria, de polpa rija e suculenta, produz vinhos com intensidade de aroma média e com um bom equilíbrio entre álcool e acidez. Rabigato, de origem duriense, resulta em vinhos aromaticamente complexos, sugerindo notas de acácia e flor de laranjeira com apontamentos vegetais. Confere uma acidez penetrante e óptima estrutura. Enriquece vinhos de lote e pode ser vinificada em extreme. Recentemente, a Comissão Vitivinícola Regional de Trás-os-Montes (CVRTM) propôs alterações à lista das castas autorizadas, proposta que se encontra em apreciação no IVV.

Abrir para o mundo

Para além das condições climatéricas, o isolamento da região transmontana do resto do país e a dificuldade de comunicações (basta lembrar a existência da segunda língua oficial em Portugal – Mirandês) também contribuíram para a difusão da vinha nas suas terras – para beber vinho, o agricultor teve que o produzir. Praticamente todo o vinho produzido consumia-se dentro da região. Era bastante rústico, não correspondia aos gostos refinados de hoje e dificilmente competia com os vinhos mais sofisticados produzidos noutras regiões.
O reconhecimento da Denominação de Origem (DO Trás-os-Montes) e IG Transmontano, em 2006, deu um novo impulso à região. Segundo Ana Chaves, da CVRTM, “a aposta na promoção e comunicação tem resultado num aumento significativo do volume de exportação, sendo que aproximadamente 15% do vinho produzido na região é exportado para 17 diferentes países, sendo Brasil, França, Suíça, Alemanha e EUA os principais”. Segundo aos dados da CVRTM o vinho certificado corresponde a cerca de 3 milhões de garrafas por ano, sendo aproximadamente 70% de vinho tinto e 30% de vinho branco.

Estão presentes 120 marcas transmontanas no mercado e já existem produtores de vinhos com qualidade impressionante (e a nossa Grande Prova confirma isso mesmo), como a Costa Boal Family Estates, a Quinta de Arcossó, a Valle Pradinhos, a Valle de Passos, a Quinta Serra d’Oura, ou Quinta do Sobreiró, só para nomear alguns. São competentes e dinâmicos, capazes de projectar a imagem da região noutra dimensão, criando valor e notoriedade. Não faltam, pois, as condições para produzir vinhos autênticos e com carácter diferenciador. Agora é preciso ganhar o reconhecimento por parte dos enófilos e consumidores. Depois da nossa prova, estou certa de que a região de Trás-os-Montes ainda vai dar que falar.


 

Lagares Rupestres: regresso ao futuro

No concelho de Valpaços encontra-se a maior concentração (mais de uma centena) de lagares rupestres em Portugal. São de diferentes formas – rectangulares, quadrados e até circulares – escavados em maciços graníticos, mais predominantes em freguesias onde houve uma maior ocupação romana, como Santa Valha. Segundo o professor geólogo Adérito Medeiros Freitas, autor do livro “Lagares Cavados na Rocha”, os lagares “na generalidade, são romanos” e os mais antigos poderão reportar há dois mil anos ou mesmo a mil antes de Cristo”.
Sem dúvida é um grande legado histórico, um património que uma vez identificado não pode retornar ao esquecimento. Por isso já há 2 anos fazem-se os ensaios de produção de vinhos desta forma ancestral – confidenciou Ana Chaves, da CVRTM. Em 2016 realizou-se a primeira colheita de 600 garrafas e em 2018 foi repetida a experiência. Já foi preparada a documentação para certificação dos vinhos feitos em lagares rupestres e, brevemente, a história da região poderá conhecer o seu futuro.

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