Undated: A magia dos “sem data”

Quando se fala aqui em tendências do consumo, é bom que tenhamos em mente que estes vinhos sem data são um mero apontamento num mar de vinhos datados, aqueles que são mais comuns no mercado. Habituámo-nos a falar na data porque não há dois anos iguais e o vinho pode (mas nem sempre) espelhar as características do ano ou da zona onde nasceu. Falamos, por isso, em vinhos (demasiado) maduros nos anos muito quentes, de vinhos frescos quando lhes sopra a brisa marítima, ou ainda de vinhos de elevada acidez decorrentes da altitude ou da exposição. Temos também de ter sempre presente que qualquer vinho, mesmo datado, pode incluir até 15% de vinho de outra colheita. Isto significa que o legislador teve o cuidado de prevenir qualquer situação extrema – climática ou outra – permitindo que o vinho possa ser melhorado e polido, juntando vinho de outra colheita nas percentagens previstas. Assim sendo, a tal “expressão máxima do terroir” só será possível se não houver lote, se o vinho for única e exclusivamente de um só ano. Esta atitude, que pode tomar contornos um pouco radicais se o produtor entrar na fileira dos fundamentalismos, é possível em vinhos de nicho, de muito baixa produção e oriundos de produtores que não têm de se preocupar com as contas. Já os outros, a esmagadora maioria que usufrui das facilidades concedidas pela lei, procura equilibrar os vinhos de um ano com 15% de outros que poderão ajudar na melhoria do lote final. Mas hoje queremos falar dos não datados, aqueles que não querem saber da data da colheita no rótulo. Estão preocupados com outras coisas.

 

Vinhos undated O que a história nos diz

Vinhos datados não são uma modernice. Existem desde o séc. XVIII e também em Portugal, com grande destaque para os vinhos generosos, os mais apreciados e os que chegaram até hoje. Após as demarcações do início do séc. XX e ainda antes de se demarcarem, a partir de 1979, as regiões, tal como as conhecemos hoje, já os vinhos eram datados. Era a época – até aos anos 90 – em que a marca se sobrepunha à região e a qualidade estava muitas vezes conotada com um designativo de qualidade muito apreciado na época: vinhos Garrafeira. E eles existiam em marcas que, todos sabemos, resultavam de lote de vinhos de várias regiões, com a Bairrada e o Dão a serem as mais procuradas.
Mas também existiam vinhos não datados que são os arquétipos daqueles que falamos neste texto. Algumas marcas emblemáticas, que tinham o carimbo da máxima qualidade e mais acarinhadas pelos consumidores, em boa verdade não eram datadas porque…usavam vinhos de várias colheitas. A intenção era, então, idêntica à de hoje: melhorar o lote final, num equilíbrio que seria difícil de encontrar no vinho de uma só colheita. O exemplo paradigmático era a marca José de Sousa Rosado Fernandes, com sede em Reguengos que, nos anos 60 e 70, raramente engarrafava com data: eram vinhos em que o enólogo procurava juntar várias colheitas para obter o estilo que pretendia. Em alguns casos decidia depois que data punha, nas garrafas ou, mais vulgarmente, apenas nas caixas.

Este novo estilo renasceu entre nós com o Branco Especial da Quinta dos Carvalhais, que surgiu no mercado em 2014. Os enólogos (Beatriz Cabral de Almeida e Manuel Vieira) usaram vinhos de três colheitas para, ainda que timidamente, colocarem no mercado um branco que desafiava tudo o que então existia. Por isso fizeram apenas 3000 garrafas quando actualmente, a 7ª edição, e já sem Manuel Vieira, contempla 14 733 exemplares. A evolução do preço é também a demonstração do apreço que o público mostrou: a primeira edição estava tabelada a €30, a actual vai em €70. Não há regra fixa mas, diz Beatriz, “tentamos fazer de dois em dois anos. Actualmente o lote junta vinhos de mais colheitas, e é desde sempre assente em três castas: Encruzado, Gouveio e Sémillon, mais alguma percentagem de parcelas de field blend. Talvez a diferença em relação às primeiras edições é que agora procuramos fazer os vinhos já com a intenção de os conservar longamente em barrica. Só no momento do lote final é que sai tudo da madeira.” A 8ª edição sairá em 2025.

 

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Apenas um pormenor

Como se pode verificar pelo lote de vinhos que aqui sugerimos, existem mais versões em branco do que em tinto. A Wine & Soul lançou, em finais de 2020, um Guru NM, um branco não datado e muito aplaudido pela crítica. Jorge Borges informou-nos que está em preparação uma nova edição, a sair em 2026, mas os vinhos, para já, estão em madeira. Jorge não tem dúvidas: “são vinhos que são originais precisamente por integrarem as características dos vários anos e a produção, em virtude do longo estágio, sai caríssima, o dobro do que custa o normal Guru”. Replicar o modelo em tintos não está nos planos. Manuel Vieira, que integra a equipa de enologia dos Caminhos Cruzados (Dão), diz-nos que não há razão para não se fazer também em tintos. “A minha experiência anterior era com brancos e foi apenas por isso que aqui fizemos o Vinhas da Teixuga, que beneficia da grande qualidade do Encruzado da quinta”. Também o Kaputt é branco, mas o enólogo da empresa (actual Van Zeller Wine Collection), Álvaro Van Zeller, não descura a hipótese de se fazer no futuro um tinto com estas características. Reconhece que este tipo de vinho “será sempre para um nicho do mercado. O vinho final perde a personalidade que lhe adviria do ano em que nasceu e poucas pessoas poderão valorizar isso, tal como vinhos que resultam do lote de regiões diferentes têm de levar selo IVV, o que não é entendido, pelo consumidor, como apenas um pormenor”. Vinhos brancos existem em várias regiões, ou seja, não se trata de um mérito apenas desta ou aquela. É o trabalho de adega e o conceito que o enólogo possa ter que vai determinar a decisão.

Os tintos assumem, por vezes, um lado comemorativo: aconteceu com a 2ª edição do Memórias Alves de Sousa, lançado no mercado em 2024 e que comemora 30 anos de história, com vinhos da segunda década deste século. Comercializado em garrafa normal (a 1ª edição tinha sido apenas em magnum), fizeram-se 4000 exemplares. Domingos Alves de Sousa e o filho, Tiago, procuraram “repetir aqui o que se faz num Porto tawny, juntando vinhos de idades diferentes, uns em casco e outros em cuba. Não temos para já ideia de fazer isto com vinhos brancos; seria outro conceito bem diferente”, diz Domingos. Luís Louro, com o seu Monte Branco XX, está agora a comemorar duas décadas de história; já tinha feito outros com lote de colheitas, mas por razões “administrativas” saíram com data no rótulo.

O perfil comemorativo não é regra: o Falua Undated Cabernet Sauvignon é um tinto acabado de surgir no mercado que junta várias colheitas de vinho com origem na vinha do Convento e é muito surpreendente, porque nada no vinho sugere que não seja um vinho muito jovem. Mérito tripartido – da vinha, da casta e da enologia, a cargo de Antonina Barbosa, que não descarta a ideia de fazer também em branco: “é uma hipótese, mas teremos de lhe retirar o epíteto de Reserva exactamente porque a lei não autoriza designativos em vinhos de lote de várias colheitas”.
Estes são vinhos de experiência e os produtores sabem disso. Pode não ser fácil acertar no modelo à primeira, mas vale a pena experimentar, até porque dos Açores a Monção temos um enorme (!) país para poder surpreender e fazer nascer novos consumidores.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2025)

 

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