O desenvolvimento dos espumantes brancos feitos a partir de uvas tintas é ainda relativamente recente em Portugal, mas parece constituir uma via cada vez mais apetecível para os produtores nacionais. A rica história do Blanc de Noir em Champagne atesta a validade do conceito.
TEXTO Dirceu Vianna Junior MW
FOTOS Ricardo Palma Veiga
Comecemos pelo princípio, com a origem e contexto histórico dos blanc de noirs. A região de Champagne, situada no nordeste da França, é sinónimo de espumantes de qualidade. A associação é tão forte que muitos associam esse local com a criação do estilo; no entanto, documentos encontrados na Abadia de St Hilaire, em Limoux, sul da França, datados no ano de 1531, constituem as evidências mais antigas associadas a este estilo de vinho. O primeiro espumante da região de Champagne tem origem em 1690. Conta-nos a história que um monge benedictino foi ouvido chamando entusiasticamente os seus companheiros para o porão da Abadia de Hautvillers sob o pretexto: ‘‘Irmãos venham, estou vendo estrelas”, referindo as pequenas borbulhas evidentes no vinho.
A verdade é que Champagne não foi um produto inventado. O processo foi consequência de uma evolução que durou vários anos e contou com contribuições de várias pessoas. O monge beneditino, conhecido como Dom Perignon, foi talvez o indivíduo que mais contribuiu para o desenvolvimento desse estilo. Pelo facto de gostar do trabalho associado à terra, o monge era um viticultor prolífico e expandiu o conhecimento sobre a poda das vinhas na região. Sendo um estudioso e um meticuloso profissional, Dom Perignon desenvolveu aspectos que ajudaram a compreensão do terroir de Champagne, selecionando as melhores parcelas e identificando onde determinadas varietais poderiam obter os melhores resultados.
Além disso, tinha muito cuidado para manter as uvas intactas e, por esse motivo, preferia que a colheita fosse executada na parte da manhã, em condições mais frescas, seguida de um processo de selecção onde uvas imperfeitas eram rejeitadas. Dom Perignon preferia que o transporte dos vinhedos à adega fosse feito por mulas e burros, citando que esses animais moviam-se mais suavemente, evitando assim a possibilidade de danificar as uvas.
Parecendo entender o impacto positivo do envelhecimento, Dom Perignon optava por deixar os seus vinhos descansando por mais tempo do que os de qualquer outro produtor na época e o resultado era obviamente superior. Numa carta escrita em Novembro de 1700 por Bertin de Rocheter, comerciante da região, destinada a M. d’Artagnan, oficial do exército, ele descreve a qualidade superior dos vinhos de Hautvillers comparando o preço médio de um produto local com o preço de um vinho feito por Dom Perignon, que era quatro vezes mais caro, atingindo, na moeda da época, 900 libras.
Nem sempre era possível obter boa qualidade, principalmente no que diz respeito aos vinhos tintos, devido à falta de maturação. Até então, devido à falta de tecnologia e know-how, não era possível fazer vinhos brancos através do uso de uvas tintas. Os vinhos produzidos na região eram denominados “Vin Gris”. Esses não eram cinza como o nome sugere, mas rosa pálido e ligeiramente turvo. Entre as contribuições feitas pelo monge beneditino, uma das mais significantes foi ter sido o primeiro a produzir um vinho verdadeiramente branco a partir de uvas tintas. A prensagem era feita o mais rápido possível, tentando minimizar a possibilidade de que o mosto fosse tingido pelos componentes fenólicos responsáveis pela cor dos vinhos rosé e tintos. A sua reputação em relação a esse assunto é incontestável. Documentos encontrados na vila de Aÿ, a poucos quilómetros de Hautvillers, na sub-região do Vale de la Marne, escritos logo após a sua morte, confirmam isso.
Blanc de Noirs vs Blanc de Blancs
Quando um vinho branco é produzido exclusivamente a partir de uvas tintas, o termo Blanc de Noirs, de origem francesa, é usado para descrever esse estilo. A polpa das uvas tintas, com poucas exceções, é de facto incolor e desde que o contacto entre o mosto e a pele seja mínimo, o resultado obtido é essencialmente um vinho branco, mesmo que a cor possa apresentar uma tonalidade rosada ou nuances de cobre devido à presença de pigmentos na pele.
Na boca, esse estilo de vinho tende a ser mais encorpado, denso e pesado e frequentemente exibe características de frutos vermelhos. O termo Blanc de Noirs é frequentemente associado com a região de Champagne, onde, entre alguns dos mais notáveis exemplos, é possível destacar Krug Clos d’Ambonnay, que tem origem num pequeno vinhedo murado de somente um hectare na vila de Ambonnay; e Bollinger ‘Vieilles Vignes Francaises’, feito pela primeira vez no ano de 1969 para comemorar o septuagésimo aniversário da Madame Bollinger. Este cuvée tem sido uma das referências em termos de estilo.
Em Champagne, as uvas em questão são Pinot Noir e Pinot Meunier. Noutras regiões produtoras existem uvas locais que podem substituir ou serem incluídas no lote, como, por exemplo, a varietal País no Chile, Cabernet Franc no Vale do Loire e Baga na Bairrada, entre muitas outras.
É possível encontrar excelentes Blanc de Noirs na maioria das regiões produtoras de vinho do mundo, como por exemplo Espanha (Juve y Camps), Itália (Contadi Castaldi), Inglaterra (Ridgeview), Alemanha (Schloss Vaux), EUA (Schamsberg), Austrália (Henschke), Nova Zelândia (Johanneshof), Chile (Bodegas RE) e Brasil (Cave Geisse).
Blanc de Blancs é o estilo oposto ao Blanc de Noirs, uma vez que é feito exclusivamente a partir de uvas brancas. Celso Pereira, que desde 1989 é responsável pela produção da Caves Transmontanas, que inclui a marca Vértice, descreve um Blanc de Blancs como um estilo mais linear, fresco e mineral. Por esse motivo, tende a ser apreciado por sommeliers e profissionais do vinho, embora possa parecer um pouco austero para consumidores iniciantes. Além de acompanhar aperitivos, esse estilo é adequado para harmonizações com pratos mais delicados, especialmente frutos do mar, devido ao seu frescor, tensão e características de salinidade. As melhores sub-regiões nos distritos de Champagne para Blanc de Blancs são a Côte des Blancs e Côte de Sézanne, onde a casta Chardonnay desenvolve-se distintamente bem, especialmente nos vilarejos de Avize, Chouilly, Cramant, Le Mesnil-sur-Oger, Oger e Oiry. Entre os exemplos mais notáveis destacam-se Krug Clos du Mesnil, Pol Roger Blanc de Blancs e Taittinger Comtes de Champagne.
Blanc de Noirs em Portugal
Em Portugal os registos históricos atestam que o primeiro espumante de método tradicional foi feito pelo engenheiro José Maria Tavares da Silva, na Escola Prática de Viticultura e Pomologia da Bairrada, em 1890, mas o período em que surgiu o primeiro Blanc de Noirs de Portugal é incerto. A Caves Messias parece ter sido um dos pioneiros desse estilo na década de 80, mas é provável que o enólogo da empresa naquela época, Adelino Pato Macedo, já utilizasse a casta Baga para lotes de espumantes vinificados no estilo Blanc de Noirs anteriormente a esse período. De facto, havia na altura muita procura para base de espumantes e em certos momentos não havia volume de castas brancas suficientes para a suprir.
Miguel Pereira, responsável comercial da Caves Messias, descreve o estilo Blanc de Noirs português como um espumante tipicamente robusto, potente, redondo, diferenciando-se sobretudo pela fruta vermelha, apresentando certa austeridade enquanto jovem e revelando textura mais palpável e complexidade com pouco tempo em garrafa. O que o torna perfeito para acompanhar canapés e pratos principais à base de aves ou peixes.
De acordo com Luís Pato, respeitado e carismático produtor da Bairrada que iniciou a sua carreira em 1980, a sua inspiração vem de Champagne. Resolveu fazer um Blanc de Noirs à base de Baga em 1990 e hoje elabora um estilo sem uso de sulfuroso ou qualquer adjuvante para retirar a cor. Na interpretação de Luís Pato, a casta Baga comporta-se de forma semelhante ao Pinot Noir e quando plantada em solos argilo-calcáreos pode desenvolver características similares aos bons espumantes da região de Champagne.
Apesar de o solo desempenhar um papel importante no estilo do vinho, existem uma série de parâmetros essenciais como, por exemplo, altitude e exposição. Celso Pereira descreve as condições naturais da vinha que foi plantada com Pinot Noir no Planalto de Alijó, com exposição nascente e altitude da ordem dos 610 metros, como factores críticos. O ciclo dessa parcela é curto. As vindimas ocorrem no final de Agosto, resultando em fruta com alta acidez e pH baixo, critérios fundamentais para elaboração de um vinho base para espumante de alta qualidade. Luís Pato descreve o seu Blanc de Noirs como um produto de um aproveitamento, visto que as uvas são oriundas de uma primeira vindima que é feita antecipadamente com o objetivo de reduzir a quantidade de cachos e melhorar a qualidade das uvas que serão destinadas ao vinho tinto. A primeira passagem é feita na época adequada para fazer espumantes, pois as uvas dispõem de mais acidez, mais leveza e menos aromas. Aromas delicados e frescor são vitais. Para o estilo Blanc de Noirs, a Cave Messias prefere a casta Baga oriunda de solos arenosos, que conferem intensidade da fruta adequada, aliada à leveza e ao frescor.
Os maiores desafios
Na adega, um dos maiores desafios durante a elaboração de um Blanc de Noirs, de acordo com Luís Pato, é conseguir um vinho base sem precisar de recorrer a processos como uso de carvão ou PVPP (Polivinilpolipirrolidona) para remover vestígios de cor. Celso Pereira aponta, entre os principais obstáculos, a extração e separação das diversas fracções ao longo do ciclo de prensagem, juntamente com o estágio, tanto em inox como em barricas usadas de 225 litros, como desafios permanentes. No entanto, explica que os desafios de um longo estágio, tanto na parte técnica quanto no esforço financeiro necessário, são uma das formas que encontra para diferenciar os seus produtos.
Fazer um vinho espumante diferenciado e de alta qualidade exige paciência e determinação, explica Celso Pereira. Os custos inerentes são elevados e por esse motivo comercializar um espumante que aparece no mercado nacional na faixa dos 50 euros nem sempre é fácil e em âmbito global acaba competindo directamente com um bom vinho da região de Champagne. Luís Pato explora, além da qualidade, o lado natural do produto, visto que não adiciona sulfitos e não corrige a dosagem antes de lançar o produto no mercado. Para Miguel Pereira a vantagem na hora da comercialização, mais do que ser um Blanc de Noirs, é ser um “Baga Bairrada”, pelo facto de ser uma categoria única.
Filosofias distintas resultam em vinhos bastante diferentes. Por um lado, esse aspecto enriquece a diversidade dos vinhos que Portugal tem a oferecer ao consumidor; mas, por outro, essa heterogeneidade de estilos torna a escolha complexa, pelo facto de essa categoria não oferecer um estilo consistente como acontece no caso de vinhos da região de Prosecco, Cava ou Champagne. Ainda existe um trabalho a ser feito em certos aspectos para que o consumidor venha a entender claramente o perfil do espumante português, o que tem a oferecer ao consumidor e a sua capacidade diferenciadora.
Existem exemplos de vinhos jovens, simples e refrescantes, como é o caso do espumante Baga Barrada da Caves Aliança, que certamente preenchem os requisitos de consumidores que buscam um produto bem feito, com boa relação entre custo e benefício. Espumantes como Muros Antigos Alvarelhão e Luís Pato Vinha Pan são exemplos de vinhos individuais, que demonstram criatividade e certamente poderão atrair a atenção de consumidores que buscam algo diferente e interessante para compartilhar com os seus amigos.
Ora, há evidência de que Portugal tem o terroir e a capacidade para produzir espumantes aptos a satisfazer até os paladares mais exigentes. Alguns desses Blanc de Noirs exibem qualidade e classe o suficiente que fariam até o próprio criador desse estilo sorrir e gritar aos quatro ventos: ‘‘Irmãos venham, estou vendo estrelas.”[/vc_column_text]
Edição Nº21, Janeiro 2019