É o mais antigo enólogo em actividade, em Portugal. Com 56 anos de dedicação ao vinho, António Saramago é artífice da uva Castelão, bandeira da Península de Setúbal, conhecendo-a como a palma da sua mão. Agora, foca-se somente no seu próprio projecto, na terra que o viu nascer, sem planos para cessar.
TEXTO Mariana Lopes
NOTAS DE PROVA Mariana Lopes e Luís Lopes
FOTOS Ricardo Gomez
António Saramago tem 70 anos. O andar sereno e o olhar plácido não deixam esconder a bagagem que traz, nem transparecer o que lhe vai na mente. Quem o conhece, sabe que é mesmo assim, a postura não fraqueja. Mas a sua casa, em Azeitão, na Península de Setúbal, tem sempre a porta aberta. Afinal, Saramago tem muito para contar.
Foi com apenas quatorze anos que entrou para a José Maria da Fonseca (JMF), a cinco de Maio de 1962. Teve de o fazer tão cedo, pois a vida não era folgada. Sob a orientação de António Porto Soares Franco viu, ouviu, aprendeu, ajudou e executou, mostrando apetência para as coisas do vinho e capacidade de trabalho. Na altura, com o apoio António Francisco Avillez, a JMF enviou António Saramago para Bordéus quando este tinha 24 anos, para uma formação em enologia. Também um curso de francês, em Setúbal, foi incentivado pela empresa. A aposta era óbvia, e o jovem aprendiz sentia-se acarinhado. À data, Domingos e António Soares Franco (actuais proprietários e administradores da JMF), eram bastante novos, e o enólogo consultor era Manuel Vieira (pai), acabando Saramago por se estabelecer como chefe de serviço de enologia, cargo hoje comummente apelidado de enólogo residente. António Francisco Avillez, Manuel Vieira e António Porto Soares Franco são, assim, nomes que António Saramago não deixa de mencionar quando conta a sua história: “São as pessoas que mais me marcaram na profissão. Primeiro, porque gostavam de mim, depois, porque achavam que eu tinha jeito para isto. Tive sorte de ter trabalhado numa casa como aquela, que mesmo hoje continua a ser uma verdadeira escola”, confessou. Saramago acabou por sair da JMF em 2001, após uma longa estada na casa.
Curiosamente, a emancipação enológica do azeitonense ocorreu no Alentejo e não na região de origem. Nos anos 80 era já consultor da Adega do Fundão e da Granja Amareleja e, um pouco mais tarde, da Herdade de Coelheiros e Adega Cooperativa do Redondo. “Quando comecei no Alentejo, ninguém lá trabalhava com barricas novas, fui pioneiro nisso. Incentivei, na Granja Amareleja, que se começasse a usar e acabámos por adquirir dez barricas de carvalho novo de 225 litros”, contou. Foi daqui que nasceu a marca, criada por José Leal Sobrado e António Saramago, chamada Terras do Suão, que acabou por “explodir” nos restaurantes de Lisboa. É também curioso que o vinho Tapada de Coelheiros, tenha surgido em seguimento isto: Joaquim Silveira, então proprietário da Herdade de Coelheiros, costumava ir almoçar ao Gambrinus todos os fins-de-semana. Pelo sommelier do restaurante lisboeta, foi-lhe apresentado o Terras do Suão como sendo um dos melhores vinhos do Alentejo. A verdade é que, na altura, os vinhos alentejanos de elevada qualidade contavam-se pelos dedos de uma mão. Aí, Silveira abordou Saramago para que este criasse em Coelheiros um vinho que estivesse ao mesmo nível, e este aceitou o desafio. Apesar de já tratar a uva Castelão por “tu”, António sabia bem que esta, mesmo sendo a casta mais plantada no Alentejo naquela década, não era ideal naquele terroir de Arraiolos, e começou por arrancar todo o que lá havia. Plantou mais Cabernet Sauvignon (incentivado pela paixão bordalesa de Joaquim Silveira), um pouco de Trincadeira e Aragonez, e reforçou a área de Chardonnay. Por esta última opção, foi apelidado de várias coisas. Mas não era António Saramago se não mantivesse a sua posição, sem vacilar. “Coelheiros foi o projecto que mais me marcou, a seguir a José Maria da Fonseca. Foi-me dada toda a liberdade de actuação, e isso é o sonho de qualquer enólogo”, revelou Saramago.
Conhecer bem a casta; ter grande experiência em como ela deve ser trabalhada na adega; aceder a uvas de uma vinha já com alguma idade. Estas são as premissas do versado em Castelão. António Saramago dedicou a sua vida a conhecer a uva: “É das mais difíceis do cardápio português. É muito sensível a doenças na vinha, gera muita “bagoinha” (pequenos bagos verdes que não vingam) e as suas maturações fenólicas são bastante irregulares”, explicou. Quando o enólogo iniciou a actividade, a Castelão representava 95% nas plantações da Península de Setúbal. No entanto, com o tempo os produtores e os agricultores foram preferindo uvas de trato mais fácil, como a Syrah, por exemplo, e o protagonismo da Castelão foi-se perdendo.
Podemos separar a Castelão em dois “tipos”: a de solo argilo-calcário, da zona da Arrábida, que origina vinhos mais leves, frescos e elegantes, com menos concentração e menos álcool, e a de solos arenosos, de Palmela, que dá vinhos mais estruturados e concentrados. Com o passar dos anos, a parte da Arrábida foi praticamente diluída, mas na zona de Palmela isso não se verificou tanto. Neste momento, até já se começou a replantar Castelão, também porque os jovens produtores e enólogos recuperaram o interesse na casta. “A Castelão é a nossa identidade”, afirmou António Saramago, que usa nos seus vinhos uvas dos solos de areia de Palmela. Quando interrogado sobre a razão da preferência, foi peremptório na resposta. “Para mim, não há lugar para Castelão dos dois solos. A Castelão deve ser plantada em solos arenosos. No solo argilo-calcário, a videira não tem estrutura para se aguentar, pois em vez de as raízes afundarem, acabam por se encaminhar lateralmente e a escassa profundidade, onde encontram a água pouco abaixo da superfície. Nos arenosos, as videiras afundam muito as suas raízes à procura de água, o que lhes dá mais estrutura e concentração ao vinho. Além disso, no pico do Verão, em terrenos de areia é mais fácil fixar o calor à superfície”.
Aqui há uma questão que se coloca: Numa altura onde começa a haver mercado para vinhos menos concentrados, mais leves e com menos álcool, não será possível fazer um Castelão de perfil diferente, mais na linha da elegância? Foi aqui que António Saramago nos surpreendeu com um plot twist. “Há lugar para esses vinhos de Castelão, mas acredito que eles possam surgir dos solos de areia e não dos argilo-calcários”, disse. Aliás, está nos planos do enólogo a criação de um vinho com esse perfil, das vinhas velhas em areia que explora, apenas com uma abordagem enológica diferente. “Será um dos meus últimos trabalhos”, declarou, um novo desafio nesta fase mais avançada da vida profissional.
Azeitão é a sua terra e a Península de Setúbal a sua região e, por isso, Saramago sempre quis criar vinhos ali, onde se sente em casa, com a casta da sua vida. Assim, iniciou o seu projecto pessoal em 2002, a pequena empresa familiar António Saramago Vinhos. “O objectivo foi fazer coisas boas, em pequenas quantidades”, contou. O filho António está também envolvido, trabalhando a enologia e a área comercial, bem como a esposa Ausenda. São referências como Risco (base de gama) António Saramago Reserva, António Saramago Superior, A.S. (topo de gama), JMS Moscatel de Setúbal Superior e António Saramago Moscatel de Setúbal Reserva. Também produz no Alentejo, onde se destaca a marca Dúvida. São 150 mil garrafas no total, cerca de metade em cada região. Incansável, Saramago criou agora um vinho de edição única, o Sucessão, dedicado aos seus três netos e dividido em partes iguais pelos mesmos. Em breve, entrará na Beira Interior e em Lisboa.
Não tem adega própria (alugando espaço de vinificação em Catralvos), nem vinhas próprias, mas explora em regime de arrendamento e compra uvas e vinho, utilizando a sua experiência para escolher o que há de melhor. Algumas dessas vinhas, de Palmela, são tão velhas e têm produções tão baixas que tem de pagar valores muito elevados pelas uvas, sob risco de o proprietário desistir da vinha e decidir arrancá-la. Visitámos uma delas. A paisagem é impressionante, uma planície de areia com cepas velhas imponentes e deixadas em liberdade, onde o sol mostra uma luz mais brilhante e onde o vento nos fustiga o cabelo. António Saramago coloca a sua mão sobre um dos braços de uma videira, como se fosse sua amiga: “Terei em breve 71 anos, mas enquanto estiver nas minhas plenas faculdades, vou continuar. Ao fim destes anos todos, continuo a gostar muito daquilo que faço. É paixão. E isso é uma coisa que nasceu comigo e que comigo vai morrer”.
Edição Nº23, Março 2019