Na terra onde os homens esculpiram montanhas em nome do vinho, o que não falta são belos locais para estar e apreciar um bom copo. Escolhemos dois, um do lado da estrada mais movimentada, o outro na margem oposta do rio Douro. Cada um deles é um miradouro privilegiado dos encantos do vizinho da frente.
TEXTO Luís Francisco
FOTOS Ricardo Gomez
Entre a Régua e o Pinhão corre uma das estradas mais cénicas do mundo, a EN222, uns 25 quilómetros de curvas suaves à beira do rio Douro que são, para muitos viajantes, a primeira, e inesquecível, visão que têm da anacrónica paisagem duriense. O rio, antes selvagem, agora domado pelas barragens, flui suavemente mesmo ao lado do asfalto, mas a placidez do espelho de água serve apenas para enfatizar o dramatismo da moldura de encostas talhadas à mão, com as vinhas penduradas sobre o abismo. O vale do Douro é um local mágico e arrebatador.
O mundo há muito que ouvia falar dessas terras longínquas e misteriosas, de onde saíam barcos carregados de pipas, desafiando rápidos e curvas traiçoeiras, rio abaixo, até aos armazéns de Gaia e do Porto onde a alquimia do tempo e a sabedoria dos homens produziam um dos mais espantosos néctares do planeta. O Vinho do Porto era conhecido, mas tudo o resto era apenas um mapa, desenhado ainda nos tempos do Marquês de Pombal, uma mancha de desconhecido num país rústico e periférico.
Mas os tempos mudaram. Hoje o Douro é muito mais do que a história e a sedução do Vinho do Porto. Para começar, porque uma parte significativa da sua produção nos surge agora sob a forma de vinhos tranquilos. Depois, porque os encantos dessas paragens começaram a ser descobertos. Quando, a 14 de Dezembro de 2001, a UNESCO classificou a paisagem natural do Douro Vinhateiro como Património da Humanidade, foi dado o passo decisivo para a afirmação da região como destino turístico.
Hoje, as águas do rio são sulcadas por navios de cruzeiro, as vetustas linhas de comboio ganharam nova clientela, pelas estradas circulam milhares de visitantes. Há até quem chegue de helicóptero às quintas mais selectas, onde superlativas unidades hoteleiras ou alojamentos mais típicos abrem as suas portas, com o copo e o prato sempre sobre a mesa. O vinho moldou esta paisagem arrebatadora e continua a ser o seu grande embaixador, é certo. Mas o Douro do século XXI é uma experiência global dos sentidos.
É uma região enorme, esta que se aninha em torno do terceiro maior rio da Península Ibérica (897km, desde a nascente, a 2160 metros de altitude, na serra de Urbión, Espanha, até à foz, entre o Porto e Gaia) e dos seus afluentes. A Região Demarcada do Douro, criada em 1756 e que reclama o estatuto de mais antiga do mundo, estende-se por cerca de 250.000 hectares, e foi dividida em três sub-regiões: Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior, progredindo de Oeste para Leste. Começa em Barqueiros, concelho de Mesão Frio, onde a temperatura média anual ronda os 13,8ºC, com uma precipitação média de 1244mm; e vai até Barca d’Alva, já na fronteira com Espanha, onde os extremos de temperatura são mais vincados (a média anual é de 15,5ºC) e chove muito menos (652mm).
Os números e a poesia
A mera observação empírica permite concluir, sem margem para dúvidas, que o movimento turístico é cada vez mais intenso no vale do Douro. Mas há números para sustentar esta percepção. Apesar de as estatísticas oficiais não individualizarem a zona, o relatório anual do Instituto Nacional de Estatística relativo a 2018 destaca o Norte como a região onde se registou um maior aumento de dormidas (8,5%) face ao ano anterior. Sintomaticamente, outra região em que o vinho é cada vez mais um argumento de sedução, o Alentejo, aparece a seguir, com um crescimento de 7,6 por cento. O Norte liderou também no número de novas unidades hoteleiras (mais 10,5%).
No que se refere ao turismo rural e de habitação, outra vez a zona mais setentrional de Portugal a assumir a liderança: o Norte tem mais de um terço (37,8%) da oferta nacional no sector e é também a que regista maior procura no panorama nacional, com 30,1 por cento das dormidas. Mais uma vez, o Alentejo aparece no segundo lugar, com 24,3%. No conjunto do país, os estabelecimentos de turismo no espaço rural e de habitação registaram quase 850 mil hóspedes em 2018, 6,8 por cento mais do que em 2017.
Há procura e a oferta está cada vez mais diversificada. No Douro, os encantos da paisagem e a magia dos vinhos atraem cada vez mais gente e o sector do enoturismo profissionalizou-se a uma velocidade estonteante. Há pouco mais de uma década, contavam-se pelos dedos das mãos as unidades hoteleiras bem estruturadas e quem se “atrevia” a viajar pela região por conta própria facilmente bateria com o nariz na porta de muitas quintas. Hoje, o panorama é completamente diferente. Produtores unem-se para criar rotas comuns, outros colaboram de forma mais ou menos informal; restaurantes, museus e sítios históricos entram nos roteiros; a região abriu as suas portas e por elas passa gente de todo o mundo.
E, no entanto, o Douro continua a ser um espaço de mistérios, de encantamento. Em cada recanto encontramos a paixão dos homens e o rigor austero da Natureza abraçando-se em paisagens inesquecíveis. O Douro Vinhateiro é uma gloriosa insanidade e, à falta de talento próprio, apropriemo-nos da escrita de Miguel Torga: “O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta.”
Vamos até lá.
A Quinta dos Frades é enorme, mas já foi muito maior. Os 200 hectares actuais (75 dos quais de vinha) já foram quase o dobro, até que a barragem de Bagaúste, inaugurada em 1973, fez subir as margens do rio, engolindo de caminho vinhas centenárias. Estamos na margem direita do Douro, a poucos quilómetros da Régua pela EN222, e o portão da propriedade surge-nos um pouco antes da povoação de Folgosa e do seu cais. Entramos e a paisagem parece engolir-nos.
Para quem já esteve no relvado de um grande estádio de futebol, a sensação imediata é que estamos rodeados de anéis de bancadas, mas aqui, junto à adega onde já começaram a chegar as uvas desta vindima, em vez de adeptos ruidosos, o que vemos são plácidas vinhas velhas (cerca de 100 anos) ordenadamente dispostas em linhas sem muros que se alongam até quase fecharem o horizonte. Não há mecanização possível: todo o trabalho tem de ser feito à mão ou com a ajuda de machos.
A quinta está nas mãos da família Ferreira há quatro gerações, mas a sua origem remonta ao século XIII (1256), então propriedade da Ordem de Cister, estabelecida no Mosteiro de Salzedas – os frades, que lhe estão no nome, tinham neste local a possibilidade de produzir vinho, pão e azeite, a que juntavam frutos como as laranjas, os figos ou as amêndoas. Durante décadas, a quinta vendeu a sua produção para grandes casas de Vinho do Porto, mas desde 2008 começou a reservar parte das uvas para as suas marcas próprias, de que faz actualmente cerca de 100.000 garrafas anuais.
Passeamos pela adega, com os seus lagares de granito, o tecto em madeira moderno mas respeitando o visual antigo, uma salinha panorâmica para provas lá ao fundo, os móveis feitos com partes de barricas. É uma adega típica do Douro, desenhada para tirar partido da gravidade, pelo que o patamar inferior é destinado ao armazenamento e lá encontramos 17 balseiros a roçar o século de existência – os maiores têm capacidade para 30.000 litros.
Está na hora de subirmos para conhecer as vinhas, mirar o marco pombalino de 1756 (um dos primeiros a serem colocados na região), provar as uvas e deslumbramo-nos, uma e outra vez, com a grandiosidade da paisagem em volta. Havemos ainda de passar pelo exterior do solar, com o seu jardim romântico, torres com ameias e canhões à porta; e depois vamos saborear os vinhos da quinta numa casa de chá com azulejos mouriscos e um sedutor pátio circular sobre o Douro. Mas é sempre aqui que fica a nossa memória, nesta panorâmica sobre o rio e as encostas que os homens esculpiram.
Do outro lado do rio, mesmo em frente, curioso, as vinhas são diferentes.
QUINTA DOS FRADES
Quinta dos Frades, Folgosa, Armamar
Tel: 254 858 241 | 910 129 112
Mail: enoturismo@predialferreira.pt
Web: www.quintadosfrades.pt
GPS: 41.149134, -7.684180
As visitas carecem de marcação antecipada e a política da quinta é fazer sessões privadas, ou seja, não juntar pessoas que não se conheçam. Mínimo dois participantes, máximo oito, embora já tenham aceite até 12. A quinta está aberta de segunda a sábado e tem dois horários diários para visita, de manhã e à tarde. A prova simples de vinhos custa 15 euros por pessoa; com passeios pela adega e vinhas/marco pombalino passa a 20 euros por pessoa (ou 90 se a opção for provar os vinhos-ícone da quinta). Flexibilidade para acomodar outras pequenas actividades, como passeios pela floresta junto à casa de chá.
Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 1,5
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2,5
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17,5
Serão uns 200 metros, em linha recta, mas é preciso recuar um pouco na direcção da Régua, transpor o paredão da barragem e enfrentar as curvas da estrada do outro lado do rio para chegarmos à Quinta dos Murças. Não é nada que assuste, mas fica desde já a informação de que nas Murças existe um barco movido a energia solar que pode ir buscar-nos à outra margem… Isto se não optarmos por chegar de comboio e sair mesmo à porta – a quinta tem acesso directo ao apeadeiro de Covelinhas.
Quando lá chegamos, as silhuetas românticas da Quinta dos Frades estendem-se ao longo do horizonte. Atrás de nós, encosta acima, a paisagem tão diferente que apercebemos quando estávamos do outro lado do rio: a Quinta dos Murças tem as mais antigas vinhas verticais do Douro (a primeira data de 1947). Sim, também há algumas que progridem horizontalmente ao longo da vertente, suportadas pelos característicos muros de pedra, mas a imagem de marca deste local são mesmo as vinhas dispostas perpendicularmente à margem.
A quinta tem 155 hectares (48 de vinha), estende-se ao longo de 3,2km de linha de rio e abarca uma diversidade enorme de parcelas, que sobem até cotas bem altas na montanha. Vir para aqui significou o primeiro grande investimento do Esporão fora do Alentejo e a aposta enoturística foi reforçada com a abertura recente de cinco quartos para alojamento. Junto à casa, uma piscina abrigada do vento pisca-nos o olho, mas também se está muito bem na varanda sobre o Douro, ou nos restantes espaços comuns. Os quartos são visualmente simples, condizendo com a atmosfera da casa, mas estão muito bem equipados. A recepção funciona na loja.
Descemos para a adega, com os seus sete lagares em granito, os balseiros e as barricas, enquanto falamos dos vinhos da casa. Fazem-se 700.000 garrafas, contando com a marca Assobio, feita com uvas compradas. Mas se falar é bom, provar é muito melhor. Juntemo-nos a um grupo de representantes de importadores dos EUA para conhecermos melhor o que por aqui se engarrafa. A sala de provas divide o seu espaço em duas áreas: uma de estar, com sofás; a outra de provas, onde encontramos uma grande mesa em madeira (que emula a peça icónica criada para as caves da Herdade do Esporão), estantes com garrafas e um ecrã onde vamos acompanhando o vídeo que nos ajuda a perceber o que temos no copo.
Lá fora, um terreiro com árvores e um repuxo aproxima-nos das águas do Douro. Estamos no final da tarde, o sol está mais suave, os pássaros fazem-se ouvir, as vinhas repousam na sombra das curvas da encosta. Tudo está em descanso nesta paisagem serena, nascida selvagem e amansada pelo suor dos homens.
QUINTA DOS MURÇAS
Covelinhas, Peso da Régua
Tel: 213 031 540 (Esporão)
Mail: reservas.murcas@esporao.com
Web: www.esporao.com/pt-pt/sobre/quinta-dos-murcas/
GPS: 41.153314, -7.688143
O programa de visitas e provas começa na caminhada com prova de vinhos Douro (10 euros por pessoa) e pode ir até aos 50 euros (passeio de barco com prova de vinhos). A visita à adega e vinhas, mais prova de vinhos Douro, custa 20 euros e as refeições saem a 30 euros por pessoa (25 para os hóspedes; crianças: 10 euros). Os quartos single custam 120 ou 140 euros (época baixa/alta), a área familiar (4 pessoas) fica por 230/250 euros, o aluguer da casa completa (10 pessoas) pode ser feito por 600/750 euros.Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2,5
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 18
ESTAÇÃO DE SERVIÇO
No Douro come-se bem e durante algum tempo a oferta de boa mesa não conseguiu acompanhar a explosão de popularidade da região. Isso, no entanto, está a mudar, com novas propostas a aparecerem e casas mais tradicionais a renovarem-se. Na Régua, a porta de entrada do Douro Vinhateiro, não é difícil encontrar boas estações de serviço para reabastecimento sólido. Deixamos-lhe três opções, uma mais económica e tradicional (Cacho D’Oiro), outra multifunções (Castas & Pratos, que é restaurante, wine bar, loja e lounge) e uma terceira que dispensa apresentações (DOC, do chef Rui Paula). Bom apetite! Acompanhe com vinhos da região e, se lhe apetecer respirar fundo para ajudar a digestão, não se esqueça que o sublime miradouro de S. Leonardo da Galafura é mesmo ali ao lado.
DOC – EN 222, Folgosa, Armamar | Tel: 254 858 123 / 910 014 040 | Mail: doc@ruipaula.com
CACHO D’OIRO – Travessa dos Aflitos 120, Peso da Régua | Tel: 254 321 455
CASTAS & PRATOS– Av. José Vasques Osório, Peso da Régua | Tel: 254 323 290 / 927 200 010 | Mail: info@castasepratos.com
Edição nº30, Outubro 2019