Projecto de nicho, o topo de gama do produtor Monte da Raposinha já se espraia por 7 edições que alcançaram o aplauso da crítica e do consumidor. Falamos do tinto Furtiva Lagrima, uma marca cujo percurso se iniciou em 2007 num “Alentejo improvável”. Provámos todas as colheitas e os vinhos mostraram-se em grande forma.
Texto: Nuno de Oliveira Garcia Fotos: Monte da Raposinha
Recordo-me bem dos primeiros vinhos que provei do Monte da Raposinha, e de quanto curioso fiquei sobre este terroir em pleno norte Alentejo, mas territorialmente situado entre as cidades de Portalegre e Santarém. É, com efeito, um local de transição e sem presença massiva de vinhas. O Monte de Raposinha está localizado apenas 500 metros a jusante da barragem de Montargil, sendo que, como nos revela João Nuno Ataíde, essa proximidade à barragem faz com que sejam frequentes nevoeiros até meio da manhã, aportando frescura aos vinhos, mas já lá iremos…
Comecemos, então, pelo nome do monte: em criança, Rosário Ataíde, actual proprietária e mãe de João Nuno Ataíde – gestor executivo do projeto –, era carinhosamente apelidada pelo seu pai de “Raposinha”, daí o nome da propriedade e de alguns dos vinhos. Ou seja, é uma homenagem ao próprio pai (e avô) mas também a toda a família. Temos, portanto, um verdadeiro lugar de família, e tudo isto antes de existir qualquer pé de vinha plantado. Por falar de vinha, os primeiros 2 hectares foram plantados apenas em 2005, tendo existido posteriores plantios em várias fases, as últimas das quais em 2010 e 2014. Actualmente, o total de vinha é de 15 hectares, menos de 10% da dimensão da propriedade, dos quais a clara maioria é tinta, sendo que parte conta com certificação biológica e a restante área está em transição. Nas tintas, encontram-se plantadas Touriga Nacional, Syrah, Alicante Bouschet e Trincadeira, enquanto nas brancas (cerca de 1/5 da vinha) produz-se Arinto, Antão Vaz, Viosinho e Chardonnay. Existe também produção de azeite, actividade de enoturismo com alojamento local e loja. Com o projeto vitivinícola em movimento, que inclui rega por parcelas, construiu-se uma adega que, descrita pela enóloga Paula Bragança, é “simples, prática e funcional”. Paula e João Nuno são casados (reforçando o lado familiar do projecto) e, no final do dia, são o duo responsável por todas as principais decisões no que aos vinhos diz respeito. Referimo-nos a 100.000 garrafas produzidas por ano, dispersas por 3 gamas fixas: Raposinha (gama de entrada), Monte da Raposinha e Athayde Grande Escolha (premium e ultra-premium) e Furtiva Lagrima (topo de gama). Existem ainda edições especiais, sem regularidade programada, caso das marcas Ensaio (o nome diz tudo…) e Maria Antonieta, este um Touriga Nacional de uma parcela de areia e calau rolado, sem fermentação nem estágio em barrica (ambas por nós provadas, recordamos as edições de 2013 e 2017). Actualmente a produção divide-se equitativamente entre mercado nacional e exportação, sendo os principais mercados, depois de Portugal, o Brasil e a Suíça.
No que ao Furtiva Lagrima diz respeito, o nome advém da aria do compositor G. Donizetti, invocando-se a elegância, mas também vigor desta obra, tão cara ao pai de João Nuno e ao próprio (ambos melómanos com vocação interpretativa). As primeiras edições deste topo de gama – as de 2007, 2009 e 2010 – eram um lote de Touriga Nacional, Syrah, Alicante Bouschet, sendo que, ano após ano, esta última casta foi ganhando protagonismo, até se tornar monocasta (as últimas 3 colheitas são mesmo 100% Alicante). A fruta advém sempre da mesma parcela de 0,5 hectares de Alicante Bouschet. Plantada em 2010, mesmo por detrás da adega, em solo franco-argilo-arenoso, a parcela conta com um clone diferente das demais parcelas com a mesma casta. A uva francesa dá-se bem no Alentejo, já sabemos, e aqui um pouco mais a norte o mesmo sucede. Não há altitude, mas existe a frescura proporcionada pelos nevoeiros matinais a que aludimos no início deste texto (por sua vez, e ao invés, a Trincadeira sofre com o mesmo fenómeno climatérico). Com abrolhamento e floração precoces, nem sempre a maturação fenólica acompanha a maturação alcoólica, sendo essencial um grande controlo da produção (poda curta de 1 olho e monda de cachos), para que o Alicante não ultrapasse as 5 toneladas por hectare, para, assim, originar vinhos com qualidade e carácter para poderem ser Furtiva Lagrima. Na adega, para onde a fruta é transportada em caixas de 15 quilos, as fermentações alcoólica e maloláctica são feitas em inox, sendo depois trasfegado para barricas novas (ou novas e usadas, dependendo do ano) de 225 litros e de diferentes tanoarias. Até à edição de 2010, o estágio incluía uma parte em carvalho americano. Ao longo dos meses provam-se as barricas para selecionar as melhores que constituirão o lote de Furtiva Lagrima.
Desde o início do projecto, e antes de Paula Bragança, passaram pela enologia os conceituados Carlos Magalhães e Susana Esteban, sendo que “a mão” de cada um (combinação de castas, escolhas de tipos de barrica) está evidente em várias colheitas do Furtiva Lagrima. Em todas as edições encontramos um vinho intenso e balsâmico, sem perder frescura ao longo das várias colheitas, e que provou evoluir muito bem em garrafa. Contudo, com a vinha a entrar numa idade já adulta, e um cada vez maior conhecimento da casta, não espanta que a edição de 2019 seja das melhores deste tinto. São 1500 garrafas de muito prazer, num perfil muito personalizado e de grande carácter.
(Artigo publicado na edição de Novembro de 2022)