Já não imaginamos o Douro sem os vinhos “de mesa” (não como categoria, mas para os distinguir dos fortificados e espumantes). Longe vão os tempos quando os “vinhos de pasto” ou “vinhos de consumo” serviam apenas para o consumo caseiro ou para providenciar o pessoal de trabalho agrícola. Em 1982 foi reconhecida a Denominação de Origem Controlada Douro, o que mudou o estatuto destes vinhos e abriu o caminho para a afirmação da região como também produtor de grandes vinhos tintos, primeiro, e brancos, mais tarde. Os primeiros Barca Velha, produzidos antes desta altura eram simplesmente “vinho tinto de mesa”. E havia outros exemplos, muitos dos quais continuam a sua existência, embora não sejam hoje tão conhecidos como na altura, pois milhares de marcas surgiram, entretanto.
As Caves Vale do Rodo (reunião de várias adegas cooperativas) em 1959 lançou um vinho tinto com marca Cabeça de Burro. A Quinta do Côtto nos anos 60 e 70 produzia alguns vinhos monovarietais, o que era verdadeiramente inovador na altura e nos anos 80, os vinhos desta quinta granjearam merecida fama, sobretudo o Quinta do Côtto Grande Escolha, estagiado em madeira nova, também pouco comum naquela época. Nesta prova essa referência mostrou-se em belíssima forma.
Mas tudo isto eram ainda casos esporádicos. O despertar do gigante começou a partir dos anos 90 e na viragem do milénio. Alguns grandes grupos internacionais reconheceram o potencial do Douro, investindo em propriedades durienses. O grupo Roederer adquiriu a Ramos Pinto em 1990 e nesta colheita também foi criado o Duas Quintas. A AXA Millésimes investiu na famosa Quinta do Noval em 1993 e o primeiro DOC Douro foi da colheita de 2004. O Grupo Vranken Pommery Monopole em 1997 comprou a Rozès.
Esta época coincide com uma nova geração de enólogos e produtores, bem formados, talentosos e ambiciosos, como Jorge Moreira, Francisco Olazabal, Jorge Borges, Sandra Tavares da Silva, Manuel Lobo, Francisco Ferreira e Tiago Alves de Sousa entre outros. Surgem projectos da Quinta do Vale Meão, Poeira, Quinta do Vallado, Wine&Soul. As empresas produtoras do Vinho do Porto começam a fazer as suas experiências nos vinhos de mesa, como a Symington Family Estates, fazendo uma parceria com Bruno Prats, formando a Prats&Symington que apresenta o Chryseia 2000, o vinho ambicioso com um polimento típico de escola de Bordeaux. E a partir de colheita de 2007, na Quinta do Vesúvio, adquirida pela Symington Family Estates em 1989, começam a nascer vinhos DOC Douro para além dos vinhos do Porto.
Ao longo dos 25-30 anos de existência dos DOC Douro, os produtores tiveram uma boa dose de aprendizagem, aperfeiçoando as formas de trabalhar a vinha, de vinificar as uvas, no uso de barrica (cada vez com mais parcimónia e em função de casta, da vinha e do ano). Foi uma afinação contínua e hoje os vinhos do Douro têm uma qualidade geral altíssima, os melhores deles impressionam pela sua finesse e carácter, mesmo variando em estilo. Deixando à parte as questões de carácter político e social e, focando, exclusivamente na prova de mais de 40 vinhos, podemos afirmar que são realmente grandes vinhos em qualquer parte do mundo.
Segundo o IVDP, a produção do vinho DOC Douro foi, em 2023, de 72.431.045 litros, quase igual de vinho do Porto, que foi de 72.436.084 litros.
Excelência nas três sub-regiões
Embora as condições edafo-climáticas variem à medida que nos afastamos do litoral e aproximamos da fronteira com Espanha, em todas as três sub-regiões se fazem grandes vinhos.
O Baixo Corgo é a sub-região mais ocidental e próxima do oceano Atlântico, embora não sofra influência directa devido à protecção da Serra do Marão, que bloqueia grande parte dos ventos frios e húmidos. O clima é mais ameno e com maior índice de precipitação em comparação com as outras sub-regiões do Douro. Os vinhos tendem a ter teor alcoólico moderado e maior acidez. Se antigamente ter vinhas nesta sub-região se considerava menos prestigiante, agora, com os efeitos do aquecimento global, é cada vez mais procurada pela sua maior frescura. Temos aqui belíssimos exemplos como o Vallado Vinha da Granja e Vinha da Coroa, Quinta do Côtto e Quinta da Gaivosa, de Alves de Sousa.
O Cima Corgo, situado no centro da região do Douro, ao redor de Pinhão, é mais seco e quente que o Baixo Corgo e com menor precipitação. O clima favorece vinhos complexos e intensos. Saem desta sub-região vinhos incríveis como o Quinta da Manoella VV, Poeira, Quinta do Crasto, Quinta do Noval, Quinta da Romaneira, Quinta de La Rosa e Quinta das Carvalhas da Real Companhia Velha, só para dar alguns exemplos.
O Douro Superior é a sub-região mais próxima da fronteira com a Espanha, sendo a mais distante do Atlântico. Tem o clima mais continental entre as três regiões, com verões muito quentes e secos e invernos rigorosos e secos também. Recebe pouca chuva, e a aridez é um factor distintivo. Produz vinhos muito concentrados, potentes e encorpados, de grande estrutura e às vezes teor alcoólico elevado. A sub-região é responsável por muitos nomes sonantes, como Quinta do Vale Meão, Quinta da Leda (Sogrape), Quinta do Vesúvio (Symington), Quinta da Ervamoira (Ramos Pinto) e Quinta Vale D. Maria (Aveleda).
Vinhas, castas e tendências
De acordo com os dados recentes do IVDP, a vinha na região do Douro ocupa mais de 43.000 ha, com a maior parte na sub-região de Cima Corgo, onde estão plantados mais de 20.000 ha. Cerca de 13.000 ha encontram-se no Baixo Corgo e cerca de 10.000 ha ficam no Douro Superior.
O lote “moderno” duriense baseia-se na tríade de Touriga Nacional, Touriga Francesa (designação mais rigorosa do que Touriga Franca, sendo cada vez mais utilizada pelos produtores) e Tinta Roriz.
Seria difícil de subestimar a importância da Touriga Francesa no Douro, onde é a espinha dorsal dos lotes quer nos vinhos do Porto quer nos vinhos Douro. É por isso que é a casta mais plantada na região, representando 28,1% da área da vinha. Está perfeitamente adaptada à região, tem uma película mais espessa, a folha é mais rugosa, o que permite aguentar melhor o stress hídrico e térmico. Aos vinhos confere dimensão, estrutura e aromas finos, embora menos exuberantes que os da Touriga Nacional. Esta representa 11,6% de área plantada e está em crescimento. Exige algum cuidado na vinha com a exposição solar para evitar que as folhas de base sequem e que fique com aromas sobremaduros. É muito flexível na adega e confere frescura, elegância e também alguma estrutura aos vinhos para além de contribuir com a complexidade aromática. Juntas, estas duas castas fazem uma base consistente de muitos vinhos durienses, incluindo os topos de gama.
A Tinta Roriz, embora esteja muito presente nas plantações, ocupando 15,5% da área, não é consensual e nos vinhos de topo de gama, salvo raras excepções, entra em proporções mais modestas. É muito dependente do terroir, tem taninos bastante agressivos, peca por falta de acidez, é muito produtiva e por isso nem sempre amadurece bem.
A Tinta Barroca, embora represente 6,6% das plantações, está em decréscimo. É utilizada mais para os vinhos do Porto, sobretudo para os Tawny, enquanto que para os vinhos Douro falta-lhe o equilíbrio. É uma casta precoce, rapidamente acumula açúcar e perde acidez e, então, para os vinhos de topo o seu uso é reduzido, a menos que esteja presente nas vinhas velhas, mas ali é outra história.
A Tinto Cão, embora não ultrapasse 1% de plantação, está a ganhar importância pelas suas qualidades enológicas. É o oposto da Tinta Barroca, sendo uma casta muito tardia, de ciclo longo. Preserva bem a acidez, tem tanino notável, produz vinhos com frescura e algum potencial de envelhecimento. Nos lotes contribui com acidez. A par da Tinto Cão, também muitas vezes entra a Sousão para temperar o lote com a frescura.
A Alicante Bouschet também presente nas vinhas velhas no Douro, não tem muita expressão, mas ultimamente tem ganho alguns adeptos. “É precoce no Douro Superior, amadurece bem, tem alguma rusticidade, mas menos do que o Sousão” – define a casta Francisco Ferreira, director de produção da Quinta do Vallado.
Vinhas Velhas, património e expressão do Douro
Verdadeiramente fascinante no Douro são as vinhas velhas. A Quinta do Crasto foi a primeira a introduzir o conceito Vinhas Velhas no rótulo, nos anos 90, e foi ainda mais longe, produzindo dois vinhos de vinhas centenárias, as famosas Vinha da Ponte e Vinha Maria Teresa (desde a colheita de 1998). Para esta nossa prova veio o Quinta do Crasto Vinha da Ponte, originado de apenas 1,96 hectares de vinha que supera os 100 anos.
Em 2020, o IVDP regulamentou a menção “Vinhas Velhas” no rótulo, considerando as vinhas com mais de 40 anos (idade média das videiras mais velhas da parcela), plantadas com densidade de pelo menos 5.000 cepas por hectare (com tolerância de 30% para falhas – videiras mortas – e excepção das parcelas com armação pré-filoxérica, com menor densidade). Para justificar a menção, o vinhedo tem de apresentar um mínimo de 4 castas, devendo 3 delas representar um mínimo de 25% do total. O rendimento por hectare não pode exceder 50% do máximo fixado anualmente para DOC Douro.
Mas não basta colocar no rótulo “Vinhas Velhas” para que o vinho passe a ter uma qualidade superior. As vinhas velhas não trazem benefício só por serem velhas ou por se tratar de uma mistura de castas. São boas quando estão no local certo, a composição é boa, quem as plantou fez bem o seu trabalho e as vinhas são bem mantidas ao longo do tempo. Por outras palavras, as vinhas velhas são boas se já o eram quando novas.
As vinhas velhas têm algumas características importantes. As raízes são bem desenvolvidas o que permite a planta chegar à água e aos nutrientes vitais para o seu metabolismo e aguentar o stress hídrico com relativo conforto. Os seus troncos grossos acumulam carboidratos, criando assim as reservas energéticas que a planta utiliza durante períodos de maior necessidade como fonte de energia. Outra característica das vinhas velhas é a produção baixa, por vezes apenas 300-500 g por planta, o que permite a videira amadurecer os cachos com muita concentração e equilíbrio (numa vinha nova isto consegue-se com uma monda em verde).
Entretanto as vinhas velhas dão muito trabalho aos produtores. Primeiro, são pouco rentáveis em termos de produção. Segundo, a sua manutenção ao longo do tempo exige decisões estratégicas a serem colocadas em prática. À medida que as vinhas velhas vão envelhecendo, algumas videiras morrem e aí o produtor opta, ou por substituição das videiras mortas (muitas vezes com a mesma casta), ou por deixar como está, assumindo que a produção vai diminuindo ainda mais, mas assim não é desvirtuada a composição e a idade da vinha. “Não quero fazer de uma vinha velha uma vinha nova” – explica Francisco Ferreira. E acrescenta que a retancha (a tal substituição das videiras mortas) também não é fácil nas vinhas velhas porque as raízes das videiras antigas são muito desenvolvidas, ocupam praticamente todo o espaço subterrâneo e o enraizamento de uma videira nova é difícil.
A preparação da vindima numa vinha velha é outra “dor de cabeça”. A heterogeneidade natural dificulta a definição da data de vindima. Muitos enólogos concordam que a avaliação analítica das amostras com 20-30 castas nem sempre reflecte a realidade e tem uma significativa margem de erro. Carlos Agrellos, enólogo da Quinta do Noval e da Quinta da Romaneira, conta que para definir a data de vindima nas vinhas velhas, se foca nas 4-5 castas que são mais populosas. “Tem de se olhar de cima para a vinha e ir provar os bagos nas zonas mais críticas”. Manuel Lobo, responsável pelos vinhos da Quinta do Crasto, concorda que “é preciso uma sensibilidade muito grande para não perder o equilíbrio”. A empresa tem na equipa uma pessoa responsável só para acompanhar as parcelas antigas. A selecção rigorosa no tapete de escolha também faz parte, para retirar as uvas sobremaduras. A vindima das vinhas velhas na Quinta do Crasto é praticamente uma operação cirúrgica em que os próprios directores de enologia e viticultura lideram um pequeno grupo de experientes trabalhadores para colher à mão apenas as uvas que atingiram o nível ideal de maturação.
Entretanto, não basta colher as uvas das vinhas velhas para conseguir fazer grandes vinhos, a sua abordagem enológica também exige uma sensibilidade quanto à extracção e ao uso de barrica. Muitas vezes as vinhas velhas não têm uma estrutura poderosa devido a castas mais delicadas na sua composição e uso de barricas novas, neste caso, pode desvirtuar a personalidade da vinha, marcando demasiado.
Carlos Agrellos conta que fermentam em inox, só com remontagens suaves e na prensagem separam a fracção de prensa e depois avaliam: caso o mosto de gota não tenha estrutura suficiente para ir para à barrica, acrescentam o mosto de prensa. Conhecer a composição das vinhas velhas é fundamental porque vai ter impacto na vinificação. Por exemplo, Francisco Ferreira relata que na Vinha da Coroa entre as 20 castas, a Tinta Roriz corresponde a 50%. Neste caso optam por uma extracção mais cuidada, enquanto no caso da Vinha da Granja, plantada em 1929, esta questão não se põe, porque entre as 32 castas, as maioritárias são Tinta Roriz 19%, Tinta Amarela 19%, Touriga Francesa 18%, Touriga Nacional 8% e Moreto 7%.
Os vinhos a partir das vinhas velhas, quando bem feitos, são absolutamente fascinantes, transmitem uma forte identidade que se reconhece em provas sucessivas colheita após colheita, uma complexidade mais entrelaçada, a lembrar uma pintura de pinceladas muito finas.
Por isto a preservação das grandes vinhas velhas do Douro é quase uma questão de honra. É um património insubstituível. Imaginem o mundo sem os vinhos Maria Teresa, Vinha da Ponte, Vinha da Granja, Vinha da Coroa, Pintas, Quinta da Manoella e outros. O panorama do Douro seria incompleto. E este património merece ser preservado e valorizado.
(Artigo publicado na edição de Novembro de 2024)
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Titan of Douro Fragmentado Blend II
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