Marisco sem risco

É caro, raro e é refeição completa quando o calor aperta. O vinho branco parece querer expulsar as rolhas logo que fica geladinho como a gente gosta. Está montada a festa bem portuguesa da cascaria. Mas se é certo que não há duas provas iguais, por que há algumas tão decepcionantes?

 

EXCEPÇÃO feita a muito poucos restaurantes, coze-se demasiado o marisco. Aliás, tudo se coze demasiado nos restaurantes do nosso país, para ser mais correcto. De um lado está o pavor da congestão quando está mal passado, do outro a ideia fixa de que os clientes gostam de tudo muito bem passado. Uma cacofonia que se instala sem que ninguém pergunte a ninguém como gosta afinal. Com o marisco então, o problema agiganta-se, não tem conta o que se estraga no sabor por cozer demasiado, quando se trata de alimentos caros, quando não muito caros. Pior, a verdade ninguém sabe ao pormenor os tempos correctos de cozedura do marisco para ficar com o máximo rendimento de sabor, nem tão pouco sabem que cada marisco tem o seu tempo e forma de cozer. Estamos no tempo de o consumir, talvez por termos mais tempo e vontade do debulhe e trabalho que a cascaria exige. Por isso, apesar de não ser o melhor momento de consumo, vamos dar uma voltinha pela mariscada e tentar olhar para cada espécie com outros olhos.

O primeiro passo para a criar uma relação nova e conhecedora com o marisco é perder o medo. De nada adianta refugiar-se nos lugares-comuns de não conseguir mexer em animais vivos, ter pena dos bichinhos coitadinhos, ou convencer-se de que é melhor continuar tudo como está e o marisco come-se nas marisqueiras. Medo e preguiça andam de mãos dadas, mas depois de uma primeira experiência bem sucedida, nunca mais vai querer deixar de comprar cru ou mesmo vivo e cozinhar em casa. Começamos pelas amêijoas que devemos mesmo comprar vivas. Acha que não consegue? Consegue sim, costumam estar a zona do peixe dos supermercados, em saquinhos de rede e acamadas em gelo. Dê-lhes um piparote com o dedo para ver se reagem, e pegue no saquinho mais reactivo que essas estão vivas de certeza. Em casa, é só pôr de molho em água fria com bastante sal durante uma hora, para expulsar eventuais areias. Depois é só escorrê-las, preparar numa frigideira um fundo de alho, e muito pouco azeite e vinho branco e levá-las a abrir. Coentros picadinhos quando estiverem prontas e já está. Se correu bem e tem coragem para mais um desafio, vamos à santola. Viva, claro e cautela com as pinças, aquilo foi feito para destruir inimigos como por exemplo nós. Já agora, o macho tem as pinças grandes e o abdómen pontiagudo e coze com o lume mais vivo do que a fêmea, Só no tempo são iguais, 25 minutos. Para as atordoar, podem por-se meia hora no congelador antes de as cozer. Não salgue a água da cozedura se a santola for fêmea.

O berbigão precisa de mais tempo em água com muito sal do que as amêijoas, pelo menos duas horas, depois deve ser levado à frigideira para abrir apenas, em menos de dois minutos ficam prontos. Reserve os sucos da operação, são deliciosos e de sabor intenso, óptima base para um arroz de berbigão, acompanhamento fantástico de filetes de peixe. O lingueirão, ou navalha dá mais trabalho na preparação, e há que mudar várias vezes a água em que se põe de molho e antes de se por a cozer deve passar-se por água a correr. Depois tem de ser tudo muito rápido. Com a água a ferver em cachão, 30 segundos no máximo é o tempo de cozedura ideal. Já agora, produza um creme de amêndoas com chalotas picadas, cebolinho e sirva ao lado do lingueirão, delícia garantida.

A sapateira é o caranguejão forte e vigoroso que conhecemos e pode dar luta ao entrar na água fervente e temos de usar uma colher de pau ou equivalente para a manter na água. Mas rapidamente desiste, e em quinze minutos de imersão em água ou caldo fervente fica cozida, bitola média. As que encontramos nas boas marisqueiras são cozidas assim, mas muitas vezes ficam esquecidas e lá se vai o sabor, para não falar da textura sem interesse que ganha. Uma lástima, realmente. O chamado camarão da costa, pequenino, coze num minuto apenas, depois da água voltar a levantar fervura. Ficam com uma consistência rija e cheios de sabor, maravilha. Os lagostins ficam óptimos em quatro minutos, e os percebes em trinta segundos apenas. É uma dor de alma vê-los cozer por demasiado tempo, pouco mais fica que uma tripa sensaborona. Onde se abusa francamente é nas vieiras. Compram-se frescas, abrem-se cruas e só mesmo levar à frigideira com um pouco de óleo ou manteiga 30 segundos de cada lado. As zamburinhas menos de metade do tempo.

Conheço muitas pessoas que acham que as vieiras não sabem a nada, e isso é justamente por terem cozido demais. Basta fazer a experiência. E pior que estragar o sabor é ficarem borrachosas, quase difíceis de mastigar. É o sabor que nos deve guiar quando construímos as nossas próprias tabelas de cozedura de marisco, sendo que a maioria é possível comer cru, ao natural. O caso extremo é a ostra, que abrimos luxando ou quebrando o tendão da concha e que comemos viva. Não é para pessoas sensíveis, é certo, este exercício, e os pingos de limão que se deitava antigamente para garantir que estava viva pela contractura da válvula deu hoje no ritual de tempero que não fica mal. Fique sabendo, a propósito todos os bivalves se podem comer crus. E sabe aquela crença de que os bivalves fechados após a cozedura não se devem abrir? É falsa. Da lagosta muito há também para contar e por isso mesmo fica para a próxima. Para já, a ousadia escrita na porta do frigorífico e que a moção de mariscar em casa perdure. Boas experiências!

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