Independentemente dos mitos que rodeiam a sua origem, o pedigree da Syrah é francês. Os estudos genéticos apontam para o Norte do Ródano como o berço da casta. É filha de uma variedade tinta Dureza (pai) e de uma branca Mondeuse Blanche (mãe).
Na sua melhor expressão, os vinhos de Syrah são densos, ricos, plenos na fruta e texturados em boca, com o corte perfeito de acidez, que equilibra a sua força. É uma casta naturalmente complexa. Para além de saber brilhar sozinha, é uma grande parceira nos lotes, onde contribui com estrutura, taninos e complexidade.
Poucas castas podem gabar-se de uma amplitude aromática tão grande. A sua impressão digital inclui especiaria pujante a lembrar pimenta preta, conferida pelo sesquiterpeno rotundona, um intenso composto aromático. A fruta varia de framboesa e cereja para amora e mirtilo. Pode apresentar notas florais, mentol, eucalipto, folha de chá. Nuances como grafite e algum alcatrão trazem uma dimensão extra. Os precursores tiólicos que a casta tem, por vezes traduzem-se nos aromas de carne fumada. O couro surge frequentemente com a evolução em garrafa.
Retrospectiva
A Syrah teve uma vida longa fora das luzes da ribalta. Nos finais do século XVIII e início do século XIX, os vinhos Syrah de Hermitage entravam nos lotes dos châteaux de Bordéus para mitigar a falta de corpo e estrutura. Estes vinhos chamavam-se “Bordeaux Hermitagé” e eram bastante apreciados na altura (até existe um certo revivalismo nos tempos actuais).
A Syrah chegou à Austrália em 1832, levada por James Busby, considerado o pai da viticultura australiana, que trouxe garfos do Vale do Ródano. E o sucesso também não foi imediato. Durante muitas décadas a casta foi usada para produzir vinhos de mesa baratos, fortificados e mais tarde espumantes (Sparkling Shiraz). A Penfolds mudou este paradigma a partir dos meados do século passado, quando criou o Grange, oferecendo, ao mercado, poderosos e encorpados vinhos que trouxeram a fama aos Shiraz australianos. Mas foi preciso chegar aos anos 80 para assistir ao boom da Shiraz, quando Barossa Valley se tornou uma moda, primeiro em Inglaterra e depois na Europa. Ao mesmo tempo, Robert Parker atribuiu 100 pontos a alguns vinhos de Côte-Rotie e Hermitage; e a crítica especializada começou a dar atenção a casta.
Até o final do século XX, a variedade era cultivada principalmente no Vale do Ródano e na Austrália. Hoje, das castas tintas destinadas exclusivamente à produção de vinho, a Syrah é a quarta mais plantada a nível mundial, a seguir a Cabernet Sauvignon, Merlot e Tempranillo, ocupando uma área de 190 000 ha. É também uma grande viajante, uma das três castas mais espalhadas pelos diferentes cantos do mundo a seguir a Chardonnay e Merlot, estando presente em 31 países (OIV 2017).
Os países com maior presença de Syrah são a França com 64 000 ha, Austrália com 40 000 ha (onde é o líder absoluto em termos de plantação, ocupando quase 27%), Espanha com 20 000 ha (na viragem do século nem chegava a 100 ha), Argentina com 13 000 (em 1991 tinha apenas 608 ha) e África do Sul com 11 000 ha (em 1991 tinha 707 ha). Nos Estados Unidos também está bem presente, sobretudo nos estados de Califórnia, Washington e Oregon.
Amplitude estilística
Os dois nomes principais – Syrah e Shiraz – identificam dois polos estilísticos. O nome Syrah, normalmente associa-se à sua origem em Côte-Rotie e Hermitage, à expressão da casta num clima mais moderado e consequentemente ao estilo mais leve e apimentado, com nuances de fruta vermelha. Sob o nome Shiraz entende-se a performance da casta na sua segunda casa, a Austrália, associada a um clima quente que origina vinhos encorpados e musculados, com fruta preta e notas achocolatadas, por vezes com um toque de eucalipto. Mas quando os produtores australianos das zonas mais frescas, como, por exemplo, Victoria e Canberra, querem comunicar os vinhos ao estilo do Ródano, nos rótulos consta Syrah e não Shiraz. E esta lógica é seguida por produtores em muitos países. Em Portugal adaptou-se o nome Syrah, sem qualquer apelo ao estilo do vinho.
Entre estes dois extremos existe toda a diversidade de estilos que a casta é capaz de exprimir em função das condições de cultivo, das práticas culturais na vinha e das abordagens enológicas.
Syrah em Portugal – chegou, viu e… ficou
É a casta estrangeira com a carreira ascendente mais rápida em Portugal. Ainda no final do século passado a sua presença era insignificante e o conhecimento sobre ela por parte dos produtores e consumidores era próximo do zero. Antes de 1980 existiam apenas 10,82 ha de Syrah no encepamento nacional, e na década seguinte 309 ha. Em 2014 a Syrah já aparece no top 10 de castas mais plantadas em Portugal, ultrapassando muitas variedades nacionais. Hoje a prima donna ocupa uma área de 6 441 ha, o que corresponde a 3% de total das plantações. No top 10 das castas tintas em Portugal só há duas castas estrangeiras, mas se o Alicante Bouschet tem uma história secular no nosso país, a Syrah claramente chegou, viu e ficou.
O Alentejo lidera nas plantações de Syrah com 2 307 ha, que actualmente é a 4ª casta mais plantada na região. Já começa a ser difícil encontrar um produtor no Alentejo que não tenha Syrah. A casta entrou na região “incognitamente” pela mão dos proprietários da Cortes de Cima, com a primeira colheita a decorrer em 1998, e tornou-se num grande clássico.
Lisboa é a segunda região no país com maior presença de Syrah, registando 2 126 ha. A Quinta do Monte d’Oiro apostou na Syrah nos anos 90 e praticamente especializou-se nesta casta. O primeiro monovarietal foi o Reserva Syrah de 1997.
A região do Tejo também teve um papel importante na história da Syrah em Portugal e hoje conta com 707 ha. A Quinta da Lagoalva de Cima foi a primeira a plantá-la nos anos 90 do século passado.
O Douro tem uma relação com Syrah mais qualitativa do que quantitativa. Não há grandes plantações desta variedade, mas os poucos vinhos varietais existentes no mercado são de grande qualidade. A Denominação de Origem não permite a utilização da casta. Por isto os vinhos de Syrah são certificados como regionais, o que, na realidade, não tem impacto na apreciação do consumidor.
Na Península de Setúbal, a Syrah é a segunda casta mais plantada (538 ha) depois do Castelão. A marcha gloriosa da casta francesa faz-se sentir noutras regiões, embora numa escala mais pequena.
Curiosidades sobre Syrah
- As vinhas mais antigas de Syrah na Austrália ainda existem, maioritariamente em Barossa Valley. A Langmeil Winery tem uma parcela de 1,4 ha com videiras de Shiraz plantadas em 1843.
- Petite Sirah não é o sinónimo de Syrah, é uma outra casta francesa que também responde pelo nome Durif, que surgiu atravez do cruzamento natural entre Syrah e Peloursin.
- O Dia Internacional de Syrah é 16 de Fevereiro. Estão a tempo de o festejar com um copo de Syrah na mão!
Porque Syrah?
Porque é, sem dúvida, uma grande casta de muitos méritos comprovados. Em muitos casos também há uma razão ou gosto pessoal.
O enólogo e produtor Rui Reguinga inspirou-se nos vinhos de Côtes du Rhône e, em 2001, plantou Syrah, Grenache, Mourvèdre e Viognier em solos com calhau rolado da Charneca de Almeirim. Estas uvas dão origem a um vinho único, tributo ao seu pai que toda a vida foi vitivinicultor.
Na Quinta do Noval, por influência do seu Director Geral, Christian Seely, foram plantadas várias castas francesas em 2003 – Cabernet Sauvignon, Mourvèdre, Petit Verdot e Syrah –, das quais as duas primeiras não passaram no casting. Syrah, ao contrário, adaptou-se facilmente ao clima quente e seco da região. O sucesso levou-o a repetir a experiência, plantando em 2007 Syrah na Quinta da Romaneira, um projecto pessoal de Christian Seely.
O enólogo da Quinta do Crasto, Manuel Lobo, conta que quando começaram o projecto no Douro Superior em 2002, a grande área da Quinta da Cabreira permitiu algumas plantações experimentais para testar várias castas. Nas provas cegas das microvinificações, Syrah dava sempre uma prova boa e consistente. Avançaram para a produção comercial e a primeira colheita, de 2013, já mostrou ser uma aposta ganha.
Amílcar Salgado, da Quinta de Arcossó, em Trás-os-Montes, plantou Syrah por acaso há 21 anos. Estava a fazer a enxertia no local e, por lapso, encomendou menos garfos de Touriga Franca do que tinha porta-enxertos. No momento não havia mais e aceitou os da Syrah, ficando com 2000 videiras. Nunca se arrependeu.
O proprietário da Quinta dos Termos, na Beira Interior, João Carvalho, na década dos 90 passava muito tempo em França por causa dos negócios dos têxteis, onde teve oportunidade de provar muitos vinhos feitos de Syrah. Gostou tanto que, em 2002, plantou a casta na sua quinta. Da colheita de 2006 saiu o primeiro Syrah em extreme, embora sem aparecer no rótulo, disfarçado como “Reserva do Patrão”.
Jorge Rosa Santos, um dos irmãos enólogos, responsável pela produção da família, conta que começaram a plantar Syrah em 2004. Têm duas parcelas. Uma no solo xistoso da Serra D’Ossa, que produz vinhos mais concentrados, musculados e tânicos, com aromas a lembrar carne. Outra em solos argilo-calcários esbranquiçados, que dá vinhos mais químicos, com notas de alcatrão e menos fruta. O lote das duas deu um belíssimo vinho, complexo, fino, extremamente equilibrado e cheio de carácter da casta no seu melhor.
A Syrah prefere clima quente, mas não gosta de calor em demasia. É uma casta vigorosa, produtiva e bastante resistente a doenças. Floresce tarde, evitando, desta forma, possíveis geadas primaveris. Amadurece relativamente cedo, acelerando a maturação depois do pintor, o que deixa uma janela de oportunidade algo reduzida. Todos os enólogos e produtores contactados concordaram que o momento de vindima para Syrah é absolutamente crucial, se não querem apanhá-la “jammy”.
Syrah é uma casta com comportamento anisohídrico, como a Touriga Nacional, ou seja, em condições de falta de água, aguenta algum tempo sem fechar os estomas, continuando a sua actividade fotossintética. Mas se o stress hídrico se prolongar no tempo, podemos ter “uvas em passa e taninos verdes” – refere Manuel Lobo. Entretanto, “excesso de humidade no solo, como por exemplo, na zona de Campo, é uma tragédia” – afirma Rui Reguinga.
Amílcar Salgado partilha a sua experiência de 20 anos com Syrah: “Casta excelente. O porte erecto facilita a condução e todo o trabalho na vinha. Muito homogénea na produção, não precisa de correcções, mesmo em anos quentes. Gradua bastante sem perder o equilíbrio. A Touriga Franca, por exemplo, perde acidez mais rápido.”
Mas não há bela sem senão. A casta é susceptível a uma doença de etiologia complexa e ainda não totalmente explicada – declínio da Syrah, que foi observado pela primeira vez no sul de França. Basicamente é uma morte prematura da planta. Amílcar Salgado observou este fenómeno nas suas vinhas, onde as videiras com 13-15 anos, vigorosas e aparentemente boas, de repente começam a enfraquecer, as folhas entram em senescência prematuramente, as varas não atempam devidamente. Mas tarde as plantas acabam por morrer e têm de ser substituídas. Rui Reguinga referiu o mesmo problema, devido ao qual já perdeu cerca de 15-20% das cepas.
A impressão digital da Syrah inclui especiaria a lembrar pimenta preta, conferida pelo sesquiterpeno rotundona.
Comportamento na adega
A Syrah não é só amiga do viticultor, é também uma grande aliada do enólogo, adaptando-se a diversas abordagens na adega. Até vinificada em talha se porta lindamente, como tivemos oportunidade de confirmar numa prova da Sovibor, no Alentejo.
Carlos Agrellos, da Quinta do Noval e da Romaneira, prefere não fazer grande maceração a frio e extrair só o necessário. Jorge Rosa Santos gosta de fermentações longas, a 24-25˚C – porque assim tem mais tempo para tomar boas decisões e todas as fracções da prensagem entram no lote – e do tanino mais “grippy”. Rui Reguinga e Graça Gonçalves, enóloga na Quinta do Monte d’Oiro, fazem macerações prolongadas. Na opinião de Amílcar Salgado, a Syrah permite uma boa extração de cor sem muito trabalho e não tem taninos agrestes.
A Syrah responde muito bem ao estágio em madeira, mas “é preciso ter alguma contenção de tosta nas barricas – a casta sozinha tem aromas bem definidos e apimentados” – explica Manuel Lobo. Por isto utiliza apenas 30-35% de barricas novas, sendo maioritárias as barricas de segunda e terceira utilização. Carlos Agrellos tem uma abordagem semelhante na Quinta do Noval e na Quinta da Romaneira, utilizando barricas novas, de segunda e terceira utilização.
As percentagens de barrica nova variam no lote final. Por exemplo, o Syrah do Apontador (Romaneira) aguenta mais 10-15% de barrica nova do que o Syrah da Quinta do Noval. Jorge Rosa Santos cada vez gosta mais de madeiras de maior volume e estagia o vinho 24 meses em toneis de 3.000 L com 30 anos.
Como a Syrah é uma casta com tendência para redução, abordámos este assunto com os enólogos. Carlos Agrellos vai arejando o mosto se for necessário. Graça Gonçalves controla por perto a quantidade de azoto assimilável no mosto, cuja falta pode originar redução durante a fermentação. Se for preciso também fazem arejamento ou introduzem oxigénio na cuba. Rui Reguinga e Amílcar Salgado fermentam em lagar, o que permite mais oxigenação e mais superfície de contacto com as massas. Jorge Rosa Santos não tem medo de reduções, mas sim das oxidações, explicando que “há sempre solução para redução”. Nos brancos é mais definitiva do que nos tintos, onde normalmente é resolvida com o estágio em madeira.
Por vezes, a companhia minoritária da casta branca Viognier, em co-fermentação, dá um brilho extra à Syrah. É uma prática usada em Côte Rotie para estabilizar a cor. Assim, o Quinta Monte d’Oiro Reserva tem 4% de Viognier e o Quinta do Crasto Superior tem 3%. Manuel Lobo vê o contributo deste tempero mais na textura e não tanto na fixação da cor ou no aroma.
O Tributo, de Rui Reguinga, para além da Viognier, tem Grenache e Mourvèdre. A Syrah, com 80-85%, dependendo do ano, domina, mas acaba por adquirir uma complexidade adicional.
Por vezes, a companhia minoritária da casta branca Viognier, em co-fermentação, dá um brilho extra à Syrah.
Que será, Syrah!
Será que a casta forasteira faz sentido em Portugal ao lado de tantas variedades nacionais de grande qualidade? Não assume demasiado protagonismo no palco vitivinícola português? Não desvirtua a identidade dos vinhos nacionais?
É óbvio que não é com Syrah que nos afirmamos no mercado internacional. Mas será que isto é impeditivo de produzirmos alguns vinhos marcantes desta casta?
Parece-me que nos últimos 20-30 anos a Syrah deixou de ser uma simples moda, encontrou o seu lugar em terras lusas, encaixou a sua personalidade nos nossos terroirs e cabe-nos a nós, ter um bom senso no seu emprego. Os resultados, esses, não deixam margem para dúvidas…
(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2024)
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